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1227- Trans e pós-humanismo na beira do leito. Uma leitura com o apoio da Bioética (Parte 28)

 

XII

Bioética, liberdade teórica e responsabilidade com a prática

O revolucionário radical tornar-se-á um conservador um dia após a revolução (Hannah Arendt, 1906-1975)

 

A Bioética da Beira do leito entende que cada novidade/inovação idealizada para a saúde na ilha da Utopia deve merecer a cogitação da obtenção de um lugar no conjunto já validado para diagnóstico/terapêutica/prevenção. A indisposição para um Não apriorístico justifica-se pelo entendimento que, em princípio, se trata de fruto de intenção de respeito ao clássico melhor interesse do paciente, não importa como ele possa ser individualmente avaliado e, mesmo se associado a potenciais conflitos de interesse – como patentes de fármacos. Em outras palavras, é fundamental um processo de concessão – ou não- do visto de saída da ilha da Utopia rumo ao ecossistema da beira do leito com a participação crítica da Bioética.

Sinergias entre os atributos naturais do cérebro e os desempenhos de “cérebros eletrônicos” – renomeados como inteligência artificial- são marcas da contemporaneidade de atenção às necessidades da saúde. Bioamigo, a medicina – e as ciências da saúde em geral-  está cada vez mais abastecida pelo “Made in Utopia” , vale dizer dependente da eletrônica, computadorizada, robotizada, sedenta da inteligência artificial. O que representa risco do burnout associa-se ao do tecnostresse (termo cunhado na década de 80 por Craig Brod, nascido em 1948).

Considerando o impacto na tradição da atenção às necessidades de saúde, fico imaginando as dedicadas e disciplinadas freiras-enfermeiras da Santa de Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro dos anos 60  do meu internato – a quem devo exemplos valiosos- tornadas instrumentalizadas pela modernidade tecnológica, chegando em enormes enfermarias de 20 leitos para cumprir a tríade formada por técnica, movimento e sentimento, empurrando carrinhos com computadores orientando o que é para fazer em cada paciente e neles registrando os dados e as aplicações. Creio que ficariam frequentemente invocando ajuda para seus santos protetores.

Cabe ter em mente, bioamigo, que o aprendizado de máquina inerente à inteligência artificial, se por um lado contribui para reduzir  variações arbitrárias, minimizar erros profissionais e melhor fundamentar tomadas de decisão no ecossistema da beira do leito, por outro lado, colide com limitações tecnológicas e é insuficiente para lidar com habituais abismos entre profissionais da saúde, instituições de saúde e sistema de saúde. Indica que perspectivas de progresso na atenção às necessidades da saúde trazem muitas incógnitas sobre a cogitada submissão hierárquica do cérebro “natural” do profissional da saúde. É preocupação da Bioética da Beira do leito, haja vista que o objetivo final dos cuidados responde pela designação de ser humano, o que, inclusive, levanta questões éticas sobre o uso de dados pessoais do paciente, exigente de reflexões sobre o aculturamento do aprendizado de máquina no ecossistema da beira do leito. É preciso muita cautela nas interfaces entre utopias e distopias.

Sabemos que a tecnologia é imparcial – no diagnóstico identifica o que é-  mas, não necessariamente, gera neutralidade na conexão médico-paciente, pois o potencial de divergências de valor se articula com o princípio da autonomia – desejo e preferência em função de objetivos e valores.

A Bioética da Beira do leito reforça, neste contexto, que a “presença” na ilha de Utopia de pesquisadores com interesse na saúde (foco coletivo) e de pessoas em geral (foco individual ou segmentar) se dá com dissociações das visões de beneficência/aperfeiçoamento da saúde e respinga na interface direitos-deveres humanos. Tuskejee é um triste exemplo e indica onde pode chegar a ciência pela ciência. Por isso, o entendimento que a Bioética deve compor a estrutura de responsabilidade sobre orientações e apoios que evitem uma descontinuidade abrupta da mentalidade profissional na área da saúde por supervalorização tecnológica.

O ecossistema da  beira do leito contemporânea que conta com a participação da Bioética adquire maior chance de percepção crítica das  iniciativas por mais sobrevida/mais qualidade de vida para os pacientes derivadas de sonhos com diferentes impactos sobre o além e o através do humanismo rumo ao pós-humano. Há as atuações com menor expressão de modificação do Homo sapiens como os efeitos farmacológicos e há as indutoras de transformações radicais como por ciborgue (parte humano, parte máquina), robótica, xenotransplante, inteligência artificial, implante de chips, nanopartículas (um nanômetro é um bilionésimo de 1 metro), clonagem, viagem/habitação em outro planeta e engenharia genética, sempre lembrando o quanto interferências profundas sobre o corpo provocam reações psíquicas perturbadoras – vide Frankenstein.

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