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1198- Consulta e Bioética (Parte 1)

O respeito ao direito do paciente à voz ativa pelo profissional da saúde, o acatamento a consentir ou não livremente com a aplicação de uma recomendação tecnocientífica após ser devidamente esclarecido, significam que o profissional da saúde não pode impor que sua visão categorizada como beneficência seja obrigatoriamente a mesma do paciente.

O que acontece é que especialmente estar no noviciado do imediato pós-formatura tende a estimular uma visão de unilateralidade decisória científica, vale dizer, a reconfortadora sensação do pertencimento à profissão admite dificuldades de aceitação da contrariedade leiga ao trabalhoso aprendizado sobre o rotulado como útil e eficaz.).

É uma etapa natural do desenvolvimento do nível benigno do narcisismo profissional porque faz compreender que a realidade é autolimitadora do que se quer/se pode/se deve fazer – enquanto que o nível maligno do narcisismo, como o apresentado pelos autoritários, refere-se a uma ideia de posse da qual não precisa dar satisfação ao outro, e não a uma produção que requer interações sequentes.

A pouca vivência do jovem profissional da saúde para lidar com os caprichosos significados do virar um profissional faz com que ele perceba tão somente duas pessoas apostas no atendimento, enquanto que a maturidade se encarrega de transformar a aposição em seis representações, ou seja, além das duas presenças físicas, mais quatro expressões de intercomunicação (exposição e captação de pensamentos via palavras) formadas por eu e o outro de modo bilateral.  Evidentemente, o encontro não muda as presenças físicas, mas tem o potencial de modificar a representação mental, o que na prática inclui a possibilidade de o respeito ao princípio da autonomia promover forte influência sobre a (não)aplicação do princípio da beneficência.

O envolvimento ético contemporâneo no ecossistema da beira do leito requer treinamento (a)caso-(a)caso da atitude profissional objetivando se fazer alinhado à concepção de que o emprego de métodos tecnocientíficos na área da saúde deve levar em conta o sentido mais amplo possível do efeito humano. Não faltam exigências sociais de salvaguardas ao binômio dominação-submissão acerca de estratégias diagnósticas, terapêuticas e preventivas aplicáveis à doença em cenários de interpretações calidoscópicas habitualmente carregados do emocional. Podem ser sintetizadas na adjetivação livre do Termo de Consentimento. Infelizmente, o documento introduzido com a pretensão de suscitar a independência do paciente tem se mostrado instrumento de submissão por uma solicitação burocrática de Assine Aqui! em nada precedida da leitura atenta e dos esclarecimentos por um profissional da área das ciências da saúde.

Reações capazes mais positivas ou mais negativas do paciente a recomendações tecnocientíficas diferenciam-se sustentadas pelos significados provocados pelas informações prestadas pelo profissional da saúde e, assim, determinam abrir-se ao Sim ou fechar-se ao Não (consentimento). Subentende-se que a otimização dos esclarecimentos seja relevante para a maximização da autenticidade reativa do paciente, ponto essencial para o juízo da moralidade da conduta. Termo de Consentimento à parte, os esclarecimentos se dão mais verdadeiramente por a ocasião da proposição presencial da recomendação ao paciente pelo profissional da saúde, ou seja, a comunicação oral da indicação beneficente é o momento humano do ato de (não)consentimento, aliás, tradicional e exigente da anotação em prontuário do paciente com fé pública. Um Aprove-me Aqui! ao invés de um Assine Aqui!

Bioamigo, a reatividade que se expressa pelo não consentimento admite diversas fontes de influência sobre o discernimento leigo, como por exemplo, experiências pessoais de efeitos indesejados, imaginações temerosas e autoconhecimento sobre próprias reações e, não infrequente, articula-se com justificativas de hierarquização de (pseudo)sabedoria sobre o saber constituído. Razão para o profissional da saúde adquirir o hábito de sempre considerar um não consentimento em princípio como provisório e motivador tanto de uma nova rodada de esclarecimentos quanto do interesse por uma  busca por causas da negativa.

Um Não “desobediente” definitivo do paciente faz com que o profissional da saúde – situação clínica de emergência à parte- abra mão do próprio sentido de prática da competência em função de uma combinação de desejos, preferências. objetivos e valores do paciente que, atualmente, fala mais alto. O Não do paciente é sempre sonoro para os ouvidos do profissional da saúde e vibra na mente profissional frustrando a expectativa pelo sempre bem-vindo Sim, assim impedindo o regozijo que acompanha a experiência de realizar as próprias potencialidades. Como se sabe, a bem da verdade, o ser humano não costuma ser neutro a tal impacto confrontativo, mas pelo treinamento profissional submete-se à imparcialidade. É capital distinguir que o efeito da decisão controladora pela emissão do Não, doutor embora admissível de ser vista como cientificamente imprudente, não representa imprudência profissional em função da dominância do (não)desejo do paciente.

Não nos esqueçamos, contudo, que competência não é apenas conhecimento e habilidade, inclui atitude  – menos mensurável e mais sujeita a imediatismos de reação e a improvisos- e, portanto, a capacidade do profissional da saúde ajustar atitudes lida com fronteiras mais obscuras entre juízos de competência e de incompetência. Aliás, não faltam exemplos de mesmo profissional realizando o conhecimento e a atitude em lados opostos desta fronteira. É fundamental conscientizar que na avaliação do aquém fronteira e do além fronteira contam sobremaneira as circunstâncias das individualidades de cada conexão profissional da saúde-paciente. Como acentuado por Michel Foucault (1926-1984), uma atuação moral é indissociável das formas da atividade em si.

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