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1188- Inter-relações na beira do leito (Parte 2)

Medicina é daqueles substantivos que coleciona alguns adjetivos cada qual pretendendo uma maneira de entendimento, mas que ficam melhor desacompanhados de um qualificador. Contudo, suas inter-relações admitem inúmeros adjuntos na prática. Por isso inexiste uma medicina isolada e a ciência aplicada necessita estar interligada ao humanismo. A beira do leito não é uma ilha cercada de ciência por todos os lados.

Entretanto, quando se enxerga a medicina pelo ângulo do direito do paciente à autonomia, parece que se abre um fosso entre a ciência e o ser humano, quebrando as inter-relações. A Bioética da Beira do leito preocupa-se em esclarecer esta aparência, que, aliás, se projeta especialmente para os jovens médicos que aprendem a fazer o que é para fazer mas são pouco treinados para situações onde não podem fazer por obediência ética e legal.

Bioamigo, atualmente, o princípio da autonomia é destaque na beira do leito, pois dele provém o Sim ou o Não que deve ser respeitado para a aplicação – ou não- de condutas que tenham sido diligentemente constituídas sob influência dos demais componentes estratégicos.

O eventual Não do paciente traz uma sensação desagradável para o médico que precisa ser exercitada para a mais adequada convivência. Vigorosas insistências coercivas e imediatas desistências por indiferença são polos extremos  inadmissíveis de uma gama de comportamentos cogitáveis caso a caso.

O direito ao princípio da autonomia subentende que o paciente seja uma pessoa competente e suficientemente informada e esclarecida, tenha liberdade para manifestar intenções autênticas e esteja blindado quanto a interferências indevidas de profissionais da saúde, familiares e sociedade em geral. Por isso, bioamigo, é que não se deve considerar uma medicina isolada, unidirecional no desenvolvimento de tomada de decisão sobre condutas assistenciais.

Entretanto, por mais que os subsídios do direito à autonomia pelo paciente soem como uma caracterização individualista inteiramente representativa do prefixo auto, a natureza gregária do ser humano e a marcante constituição coletiva do acervo da medicina inserem dimensões de relação a outros seres humanos.

A aplicação dos demais três princípios ajuda a refletir sobre proporções de heteronomia presentes na modelagem da autonomia de consentimento pelo paciente.

A beneficência como base tecnocientífica propositiva da recomendação de conduta foca, evidentemente, o caso específico do paciente, mas a fundamentação relaciona-se ao conhecimento acumulado de outros com circunstâncias análogas, que se costuma nomear como evidência e experiência.

A não maleficência tão necessária para a segurança clínica na prática da beneficência inclui a apreciação de peculiaridades biológicas do paciente passíveis de potencializar adversidades e baseadas no acúmulo de vivências com precedências.

A Justiça fala por si próprio quanto à dimensão relacional. Em termos práticos, o Sim e o Não do paciente é ato de autonomia incrustado de influências heteronômicas, uma verdade determinada pelas perspectivas dos métodos validadas pelas evidências e experiências. Portanto, há uma nítida distinção entre a aplicação do respeito ao princípio da autonomia na pesquisa – que lida com desconhecimentos- e na assistência- que lida com conhecimentos.

Bioamigo, admitamos a competência cognitiva do paciente e eliminemos a coerção profissional num determinado atendimento à saúde. Afastamos, desta maneira, a ocorrência de abusos impositivos como os verificados na recente história da medicina. Fica, então, das premissas acima mencionadas, a intenção do paciente, diríamos a autenticidade da intenção que fundamenta o Sim e o Não que manifesta ao médico como uma natureza intrínseca, ou seja,  o Sim ou o Não (consentimento) absolutamente genuíno daquela pessoa.

Contudo, a prática revela o quanto a autonomia não pode deixar de lado uma relação humana que interfere na construção do convencimento e, portanto, na manifestação final do paciente quanto ao (não)consentimento. Vale dizer que um livre convencimento tem sempre uma apreciação subjetiva e, portanto, relativa, pois pode ser moldado por justificações físicas e psíquicas, percepções que podem afetar a linha de raciocínio lógico e contínuo e, assim, influenciar no julgamento.

Relaciono abaixo alguns fatores potencialmente intervenientes sobre a absoluta autenticidade de expressão das intenções.

  1. A dor e o sofrimento que exigem providências nada desejáveis em primeira ordem;
  2. A vulnerabilidade determinada pela doença;
  3. A influência de familiar com forte ascensão pessoal;
  4. A confiança no médico;
  5. A confiança na instituição de saúde;
  6. O tipo de informação recebida;
  7. A maneira como a informação foi expressa;
  8. A influência de estados emocionais;
  9. A influência espiritual;
  10. A solidariedade exigente da participação a mais saudável.

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