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1171- Sem dúvida, temos dúvidas (Parte 10)

Ponto fundamental de tudo, o jovem médico rejeitava adotar qualquer conselho dos colegas mais velhos que sentisse como alguma analogia com o mito do leito de Procusto, o bandoleiro mitológico que simboliza a intolerância, a imposição de comportamentos preconcebidos como ideais. Não se permitia que fosse dele arrancada tal determinação e defendia-se no máximo do que podia fazer um subordinado numa beira do leito com responsabilidade sobre um doente. Tinha um futuro pela frente! Justificativa suficiente. irresistível!

Se obedecia por obrigação de Residente, não incorporava a sua bagagem de médico, a senha do cadeado só ele teria, um resguardo da sua intimidade. O discordante era um uso descartável, a mensagem ricocheteava numa autoproteção da sua subjetividade moral. Porém, dificilmente, o esforço de preservação da lógica que adotara fazia-se isento de algum grau de culpa e ansiedade por mais que se imaginasse uma pessoa resoluta, plenamente capaz de inverter contramãos.

Tinha que se abrir com alguém, quando decidido, quando as minhocas se tornassem  insuportáveis na cabeça, as dúvidas atingissem o nível de cruéis,  procuraria e… encontraria. Mesmo na iminência da aflição de um extravio da rota idealizada, de um confronto entre força da autoridade e poder da meditação dispor-se a reciclagens sobre atitudes não é assim tão simples, a inércia é alta.

Vacinara-se na sua formação pré-universitária contra a síndrome de Procusto, nunca se permitiria evitar bloqueios na ascensão da carreira, fazer loucuras para pertencimento, às custas de praticar violências a sua moralidade, consigo e com colegas. Pensa o que quiser! E se assim for? São expressões que facilitam discussões neste contexto.

O jovem médico expressava a teoria do aprendizado social, aprender observando os outros, que tem suas peculiaridades no ecossistema da beira do leito, onde é tradição que uma geração educa a outra. Lembrei-me de experimentos em que crianças submetidas a modelos de agressividade social os reproduziam, diferente daquelas que conviveram com modelos não agressivos. Ele tinha razão de se preocupar com a perda da sensibilidade perante a dor e o sofrimento do paciente e não pude deixar de pensar nos  alcances nada elogiáveis dos possíveis tentáculos da chamada medicina defensiva.

Neste ponto, nosso diálogo enveredou pela ascética do comportamento ético, regrar-se para se aprimorar. Apreciamos como o médico atua sobre si mesmo, não somente de modo deontológico cumprindo os artigos do Código de Ética Médica, como também lapidando-se a si próprio em feedback com o seu interior, pela incorporação de interpretações dos resultados das atitudes. Em suma, constituir-se em função da experiência de fato vivenciada e analisada.

A julgar pelo rosto, o jovem médico estava confortável, nenhuma mostra de cansaço do plantão recém-cumprido. O clima era sem dúvida de bom astral, poderia ser descrito também como de fluidos empáticos que, felizmente,  predominavam  sobre os maus exalados por conta da irritação com supervisores. A ideia fixa parecia até ter crescido, sentia-se à vontade para movimentar a língua ferina, mas com menos inquietação corpórea, quem sabe por se sentir em processo de resolução. Esta reação me fez considerar que , ao contrário do que alguns colegas acham, a reunião não se fazia pesada, extenuante, ineficaz. Pelo contrário, os impactos atingiam pontos nevrálgicos, o que massageou a minha militância em Bioética.

Figuramos que seria pedagógico se pudéssemos dispor do anel de Giges de Platão (428 ac-347 ac), não para testar seu potencial de maldade, mas para,  tornando-se invisível a uma simples mudança de posição do anel, poder observar, qual câmera oculta, o que o paciente,  após deixá-lo para decidir sobre consentir ou não com a recomendação proposta, estaria verbalizando, sozinho ou com familiares. Já imaginou, bioamigo? Muito se aprenderia sobre realidades do paciente que ficam ocultas na presença do médico em função da imagem de autoridade. Facilitaria uma subsequente Deliberação Baseada em Evidências.

Sonhar de dia faz bem, provoca sensibilizações, movimentações, convites mesmo, ajuda a se aproximar, a vibrar e a realizar as revelações. Um sonho da Bioética da Beira do leito é convencer os profissionais da saúde que a prática do bem intencionado paternalismo brando não é antagônica ao respeito pelo direito da autonomia do paciente. Certamente, ajudaria muito a consideração da janela de Overton adaptada para a beira do leito segundo uso ético, para o bem do paciente, respeitoso,  isento de qualquer manipulação ou teoria da conspiração. Acreditar que o médico cumpre o Art. 24 do Código e Ética Médica vigente: É vedado ao médico deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-loMotoGP - A Janela de OvertonAPF1

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