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1100- Acasos da beira do leito. Causos da Bioética (Parte 6)

Acaso 3

EFT é um desempregado com 19 anos de idade que sobrevive pela solidariedade dos vizinhos. Ele é portador de valvopatia mitroaórtica que se manifesta como classe II. EFG está longe de casa, encaminhado a um Serviço sem contato prévio, para ser submetido a tratamento cirúrgico “urgente”.

A rotina do Serviço invalidou por enquanto a cogitação de operação imediata. O paciente alega vários problemas sociais, considera-se inválido para o trabalho e insiste em ser operado com base no que lhe haviam dito. Mudaria a sua vida, cogitava.

Estabelece-se um conflito entre a postura clínico-científica e a ideação do paciente. Houve quem percebeu a presença de uma ambulância da cidade vizinha à do paciente e conseguiu benfazeja carona de volta. EFT continuará, certamente, atribuindo a sua exclusão social à não-realização da operação cardíaca.

Quanto à beneficência/não-maleficência, a relação risco-benefício, segundo a rotina do Serviço, apontou para risco pequeno e benefício hemodinâmico alto, mas, como sói acontecer com a doença valvar, não exatamente benefício clínico; com relação à não-maleficência, pesou a expressiva probabilidade de calcificação das indispensáveis biopróteses corretivas no jovem EFT, perspectiva de reoperação em curto período de tempo; ademais, a ausência de recursos para segurança da anticoagulação oral, na região onde o paciente habita, desaconselha a opção do uso de próteses metálicas.

Quanto ao direito à autonomia, houve uma exigência do paciente, pela sua visão de qualidade de vida. O médico valeu-se, por sua vez, da sua autonomia fundamentada nas boas práticas. Como reforço da decisão contou com o princípio da justiça, em sua vertente que privilegia pacientes que se encontram, de fato, clinicamente exigentes de tratamento cirúrgico imediato.

Implicações biopsicossociais de acasos da beira do leito como esse não costumam ser comentadas no livro de texto. Os impactos não podem, contudo, ser desconsiderados pela equipe de saúde que precisa tomar decisões clínicas. Eles constituem matéria-prima para o diálogo esclarecedor. A natureza transdisciplinar da Bioética contribui para evitar os vácuos de comunicação que levam a incompreensões sobre o tecnicamente correto.

Acaso 4

 FGH é um empresário sexagenário que tem notado cansaço progressivo. Ele é informado de que o sintoma poderia ser justificado por duas causas: nível de hemoglobina sérica de 9g/dl e valvopatia mitral importante. O diagnóstico de endocardite infecciosa que uniria as manifestações é afastado e diagnostica-se leucemia aguda. Transfusão de sangue provoca edema agudo de pulmão.

Conclui-se que é válida a realização de correção cirúrgica da valvopatia mitral, apesar dos riscos impostos pela presença de pancitopenia importante e da restrição ao benefício em razão do prognóstico hematológico.

O ponto alto da decisão pela correção hemodinâmica foi o privilégio pela qualidade de vida durante a quimioterapia e a reposição sanguínea periódica.

Quarenta dias após o ato cirúrgico o paciente está em tratamento hematológico sem restrições do ponto de vista cardiovascular, conforme a estratégia planejada.

Não houve dificuldades de diagnóstico e o planejamento do tratamento da valvopatia, nesse acaso clínico, contou com o benefício transoperatório da reposição hematológica.

O conflito maior foi quanto à extensão das informações sobre risco da cirurgia cardiovascular e prognóstico hematológico. A tática foi a da fragmentação da comunicação, os pormenores informados para a família e o preciso para o momento para o paciente. Houve mais aceitação da operação recomendada com o reforço do benefício para o tratamento da leucose do que escolha entre operar ou não operar, por parte do paciente.

Na primeira parte do planejamento terapêutico, a prioridade cardiológica, o resultado pós-operatório confirmou a beneficência presumida e os malefícios cogitados como risco cirúrgico puderam ser evitados ou corrigidos. A participação do paciente na decisão sobre o seu tratamento deu-se fundamentalmente por confiança de que seria a melhor maneira de fazer, apesar do número pequeno de acasos iguais existentes na experiência da cardiologia nacional e estrangeira.

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