PUBLICAÇÕES DESDE 2014

1091- Bioética e Conexão paciente-médico.

Bioamigo, a ponte de Potter (Van Rensselaer , 1911-2001) tem alguns princípios e muitos fins.

 

Uma desembocadura é o caminho do diálogo, mão única na direção da beneficência e contramão para a maleficência.

No trecho mais sinuoso fica o Hospital Escola da Responsabilidade. Nele, o paciente faz real o aprendizado médico no estilo bumerangue, um conjunto de fatos e dados dele parte, vai até o acervo das ciências da saúde e retorna como evidências validadas e recomendadas. Nele o paciente faz humano o ser médico, no estilo pingue-pongue, comunicação verbal e não verbal que valoriza ambos os lados dispostos a educar e a serem educados.

A sala de espera dos consultórios é ampla, paredes cinzas e cadeiras amarelas, nenhuma janela, muitas expectativas. É incontável a quantidade de pensamentos mais pessimistas e mais otimistas que já aconteceram no percurso de entrada, na permanência e na saída pelos 15 anos de existência daquele espaço coletivo. O Dr. Lucas Galeno está neste momento sob o efeito do processo mental sina do local. Está sentado na segunda fileira das cadeiras e nos até agora 45 minutos de espera nem o celular amenizou o conturbado vaivém de antecipações. O que o paciente lhe diria?

Um médico acaba de sair de um dos consultórios com receita e pedidos de exame, um semblante bem mais descontraído do que entrara, o que animou o Dr. Galeno, nestas ocasiões tais observações influem. A porta ficou aberta. A expectativa cresce em pleno meio da manhã tanto para o Dr. Galeno como para as demais pessoas vestidas com jalecos brancos e canetas nos bolsos, ali reunidas de uma maneira fortuita por queixas  de saúde.

Serei eu o chamado agora? O paciente-gestor dos consultórios dá uma volta e sente-se satisfeito, estava conseguindo manter o andar organizado, horários de agendamento da consulta sem nenhuma influência de hierarquias, especialidades, privilégios de idade, de ser professor-doutor ou residente, todos médicos aguardavam ordenados a vez de consultar o paciente. Há seis meses dispensara a presença de atendente no local. totalmente desnecessário, bastava um colaborador conferindo na entrada da sala de espera.

Muitos olhos haviam se desviado dos celulares para a porta aberta do consultório 4. E acontece o esperado! Ecoa alto a voz de autoridade do paciente, é a vez do Dr. Galeno. Uma nova consulta estava prestes a se iniciar  com um prontuário vazio, uma primeira vez. Por alguma razão que ainda não descobrira, o paciente que iria consultar o Dr. Galeno ficava mais compenetrado quando ainda desconhecia o médico.

p- O próximo! Ficha 13 azul, consultório 4. Toda vez que assim gritava, o paciente xingava o paciente-gestor que em nome de uma alegada humanização, mas orientado pelo financeiro, relutava em colocar um sistema de senha eletrônica. Num dia de rouquidão chamou bravo o paciente-gestor e disse que ele ficasse na porta chamando os médicos, era professor-paciente, podia assim extravasar.

m- Sou eu… Finalmente.

p- Bom dia! Antes de mais nada, tire o esteto dos ombros, pode por na mesa e também esvazie os bolsos do jaleco, canetas, celular, carimbo, crachá, carteira de médico, todo Kit C.

m- Desculpe…

P- O que o senhor sente, ficha 13?

m- Senhor paciente, o meu nome é Galeno, Lucas Galeno.

p- Desculpe, nesta correria esqueço que devo chamar o médico pelo nome, claro, insisto nisto sempre com meus pacientes residentes.

m- Sem problemas, senhor paciente, já foi o tempo do paciente dirigir-se a nós médicos como senhor doutor, logo seremos chamados de tio.

O consultório era arrumadinho, numa cadeira ao lado do paciente estava um residente-acompanhante, havia uma geladeira com uma receita presa na porta e um armário com medicamentos e um cortador de comprimido. Na parede atrás da cadeira do médico, destacava-se um relógio com o nome de uma indústria farmacêutica. Num canto da mesa tinha um aparelho celular com a tela aberta num aplicativo para mensagens instantâneas aos médicos. Era o mobiliário bastante para o paciente se sentir confortável para atender o médico.

p- O que o senhor sente Dr. Galeno?

m- Antes, senhor paciente, obrigado pelo encaixe, não há como a palavra do paciente para fazer bem ao médico.

p- Quem é que me indicou?

m- Foi um colega da clínica.

p-Ser bom paciente é isso, os médicos gostam de me ver.

m- Ele me disse que o senhor frequenta os melhores ambientes médicos e até já foi atendido em hospital no exterior e mais, que ficou internado por 12 dias, experiência danada.

p- É verdade, duas vezes aliás, uma vez na John Hopkins e outra em Oxford e também fui voluntário de pesquisa na Harvard.

m- Disse que o senhor, inclusive, tem uma publicação em revista de alto impacto.

p- É verdade, um relato do meu caso, tenho sido muito citado, contribuo muito para a carreira  do paciente primeiro autor.

m- Ele disse também que o senhor está sempre atualizado.

p- Também verdade, sinto e tomo todas as novidades.

m- Decidi mesmo consultá-lo, senhor paciente, quando o colega disse que o senhor tem o número do celular de um farmacêutico da melhor farmácia de Boston, quase em frente à Harvard Medical School.

p-Também verdade, falo com ele todas as semanas, trocamos mensagens e e-mails, estou sempre atualizado em applied pharmacology. Quando viajo para lá trago vários potes de comprimidos que o meu amigo me recomenda, muitos de encomenda para amigos. Há algumas semanas trouxe três novidades sensacionais do Congresso de Hipocondríacos, não perco um.

m- Onde foi?

p- Foi em Paris, bem ao lado do monumento do Molière, ele é o patrono da Sociedade dos Hipocondríacos, todo congresso começa com  a encenação de um trecho da sua última peça, Le Malade imaginaire, sempre emocionante.

m- Já me sinto melhor só em perceber como o senhor tem postura de paciente responsável.

p- Mas vamos ao que interessa doutor, afinal consulta é para que o paciente possa ajudar o médico, não é mesmo? Como posso ajudá-lo nos próximos cinco minutos?

m- Cinco?

p- Uma consulta de cinco minutos parece curta, mas veja por outro ângulo, são 300 segundos e todos eles sob alta responsabilidade do paciente. Soma todas as consultas do dia…

m- De fato, entendo bem que o médico precisa respeitar o tempo do paciente, sei como ele é precioso no nosso sistema de saúde. Curioso não? Ainda se fala tenho hora marcada.

p- Muitos colegas pacientes precisam correr o dia todo de hospital em hospital para sobreviverem, porém uma meia dúzia de pacientes ainda cumpre a hora marcada.

m-Vocês pacientes são muito ocupados, não têm o tempo, o tempo que os tem.

p- O ponto de referência deve ser o tempo de vocês médicos que nos procuram com suas necessidades de saúde, não o nosso de pacientes que estamos pelo ofício. Que barulho foi esse?

m-Desculpe, senhor paciente, mas preciso atender o celular… É minha mulher… Sim querida já estou em consulta… Gostei dele sim, acho que desta vez acertei de paciente  (depois eu falo)… Não vou esquecer de dizer, anotei direitinho, palavras bem simples para ele entender… Beijo.

p- O médico que atende o celular durante a minha consulta me irrita, sinto ele se distanciar de mim.

m- O senhor tem toda razão, reduz o tempo de consulta, mas quando toca o celular do paciente, eu não me incomodo, deve ser um médico aflito.

p- E então Dr. Galeno?

m- Trouxe tudo anotado para facilitar e não fazer o senhor perder tempo

p-Seria tão bom se todos os médicos que me consultam fizessem assim.

m- Serei honesto, senhor paciente, médico não deve mentir para seu paciente, não é mesmo? Venho para uma segunda opinião.

p- Normal, sinta-se à vontade, todo médico tem direito, nenhum paciente da primeira opinião deve se ofender. É sobre diagnóstico ou tratamento?

m- Faz diferença?

p- Não, o importante é que eu tenha certeza que já passei pela experiência e posso aconselhar o doutor, respeito à ética.

m- Vim logo, senhor paciente, pois não quero ser um desses médicos que só chegam ao paciente quando a situação se agravou, muitas vezes no pronto socorro.

p- Bom doutor… O prognóstico agradece… Mas me conta como foi a consulta com o meu colega paciente, quem sabe eu conheço, um meu colega de turma do controle da anticoagulação ou de internação numa enfermaria.

m- É um paciente simpático, detalhou as providências que tomou para manter boa qualidade de vida depois que a doença foi revelada, explicou todos os remédios que já tomou, inclusive alguns mal-estares do uso, até falou sobre seus problemas hereditários, imagine, sem nunca ter me visto antes, me pareceu boa gente, mas saí da consulta inseguro, ele parecia ainda ter sintomas.

p- Do que é que não gostou?

m- Ele disse que o meu caso era típico, que os livros registravam igualzinho o que acontece com médicos como eu, aí eu questionei se ele tinha certeza e ele olhou bem nos meus olhos e disse em alto e bom som: Quem é que é o paciente aqui? Saiba que eu sou um paciente geral com doutorado em hipocondria geriátrica e defendi tese sobre a síndrome de Munchausen.

p- Os especialistas em hipocondria se tornam seguros das queixas quando falam de si com os seus médicos.

m- Ele ainda me questionou, visivelmente irritado, se não tinha visto a quantidade de receitas e pedidos de exames emoldurados na parede da sala de espera, nacionais e internacionais… As fotos com pacientes-celebridades… Ah! Falou com muito orgulho que o seu prontuário de paciente já ultrapassou 800 páginas, muita experiência. Mencionou que um dos médicos que atende é o Dr. Google que está sempre à disposição para ser voluntário de pesquisa.

p- O seu diagnóstico foi caso típico de que?

m- Mania de achar doença, CID HY39.

p- Hipocondria?

m- Não, mania de achar doença nos outros.

p- Hummmm, é o sexto caso só nesta semana, três médicos, duas superespecialistas esposas de médico e uma comadre de médico viciada em bula. Será uma epidemia? Algum vírus esmeralda?

m- Senhor paciente, eu me realizo achando doenças, mas o paciente não me entendeu bem, reagiu como se eu fosse, pelo diagnóstico, o responsável por prejudicar hábitos e sonhos de vida, por isso estou aqui, para que o senhor, paciente ilustre, me diga que doença não é minha culpa. sou apenas um simples médico.

p- Pois é, nem sempre o paciente deseja perder o controle.

m- É difícil lidar.

p- O problema é que a conscientização sobre os problemas de saúde leva um tempo dezenas de vezes maior do que o de uma consulta.

m- Senhor paciente, tem mais uma coisa que detestei, o seu colega paciente não solicitou nenhum exame, nem um simples hemograma.

p- Não diga! Eu sempre fico atento a pedidos de exame, até peço uns a mais para o meu médico, impressiona bem, embora alguns não concordam, e eu respeito, é o direito ao princípio da autonomia, eu passei a respeitar depois que li na internet sobre Bioética.

m- O senhor me parece ser um paciente ético.

p-Quero que os meus médicos fiquem sempre satisfeitos.

m-Assim o médico sempre lhe será fiel, quer dizer, se não mudar de convênio…

p- Eu nunca dispenso os meus médicos de um consentimento esclarecido e, principalmente, livre.

m- Seja mais claro, senhor paciente, não esqueça que sou um médico que se sente vulnerável e necessitado de um paciente.

p- Doutor, em primeiro lugar o senhor deve se sentir livre para tomar uma decisão.

m- Livre como?

p- Não se sentir pressionado pelo que lhe recomenda uma diretriz clínica e que não combina com o seu dia-a-dia.

m- Como é bom consultar um paciente tão humano.

p- Eu me esforço para que o meu médico seja bem esclarecido.

m-  Sempre consegue?

p- Forneço uma boa anamnese, mostro os locais que doem, um por um, sem pressa e aponto as chances de eu cumprir a conduta.

m- Todo paciente deveria ser como o senhor, humaniza…

p- Faço o máximo para que os  meus  médicos saibam dos riscos dos métodos que vão usar.

m- São muitos?

p- Os dois maiores riscos que o médico precisa saber, para não dizer amanhã que não houve a informação, são a imprudência e a negligência.

m- Pode ser mais claro?

p-Negligência é quando eu não faço o que a maioria dos meus colegas pacientes faz os médicos deles fazerem.

m- Entendi. E imprudência?

p- Imprudência é quando deixo a cautela de lado e recomendo aos meus médicos fazerem o que os meus colegas pacientes não recomendariam para a maioria dos seus médicos.

m- Viu, senhor paciente, o seu colega paciente da primeira opinião não me falou nada sobre isso.

p- Todo paciente que valoriza a conexão paciente-médico preocupa-se com o princípio da não maleficência para o seu médico.

m- É causa de erro paciente?

p-Exatamente, o paciente não deve expor o seu médico a certas adversidades próprias de um  atendimento a um ser humano e nós, pacientes éticos, precisamos entender a angústia deles.

m- Ouvir isso já valeu vir procurar uma segunda opinião.

p-Doença para nós pacientes éticos, é falta de bem-estar biopsicossocial, não começo nenhuma consulta com os meus médicos enquanto não me certifico que eles me veem como uma pessoa.

m-Negligência e imprudência são comuns?

p- Nem tanto, mas nunca se sabe, cada médico tem suas reações próprias, interpretam distintamente.

m- Mas têm cura, não é?

p-Dá para melhorar.

m- Deve ser incômodo.

m- Pode fazer sofrer e quando ocorrem, muitas vezes, nós pacientes transferimos o médico para um centro especializado. É só preencher uma guia de encaminhamento e o médico receberá a convocação.

m- O que é lá?

p- É o Centro de Reflexão Moral, chamam de CRM, O tal do sacerdócio acabou há muito tempo, mas a bíblia que eles chamam de Código continua, o versículo 1 de Juízes reza Não cometerás imprudência ou negligência.

m- Onde fica este Centro?

p- Tem nos vários estados do país, aqui por exemplo, ficava na Consolação…

m- Adequado o nome, negligência e imprudência carecem de muito consolo.

p- Mas agora foi para perto do Paraíso…

m- Otimismo é tudo!

p- Depois que eu me interessei pela Bioética tenho ajudado muito os meus médicos evitarem a transferência para o Centro.

m- O convênio aceita esta transferência?

p- Com certeza, aliás, dizem, que muitas vezes até facilitam…

m-Senhor paciente, 300 segundos com altíssima densidade de responsabilidade, viu como já sei? Bom paciente faz o seu médico aprender o certo rapidinho.

p-Hoje em dia nós precisamos nos preocupar se o plano de saúde vai permitir ao médico condições de cumprir as boas práticas.

m- A relação custo-benefício é sempre polêmica.

p- O tema da alocação de recursos merece muita reflexão em fóruns de Bioética.

m- Estou gostando da Bioética, pelo que estou percebendo todo médico deveria se interessar, ajudaria muito para se relacionar com o seu paciente.

p- Os convênios não se recusam a liberar anamnese e exame físico, não que eu saiba.

m- É verdade, algumas vezes eu desejo mesmo é fazer anamnese e exame físico, mas o paciente que eu consulto insiste tanto com exames complementares que eu fico sem jeito.

p- Talvez insegurança do colega paciente.

m- E olha eu  diante de duas tomografias, uma ressonância e uma ultrassonografia. Tem o tal do laudo que às vezes tem umas palavras que complicam.

p- A alta tecnologia impressiona, dá mais credibilidade ao diagnóstico.

m- Mas a reciclagem é importante, não é?

p- Muito, mas prefiro dizer educação continuada, reciclagem parece que é de lixo.

m- Eu percebo que pacientes têm um conflito de gerações sobre tecnologia.

p- Ontem, por acaso, tive uma discussão sobre isso.

m- Não conheço nenhum paciente que não adore ser o centro da discussão de caso.  Que tipo foi?

p- Foi com dois médicos, um tinha número de CRM abaixo de 30 mil e frequentava a Clínica Soberana, e o outro, um jovem, frequentava a clínica São Tomé, onde só vendo uma imagem para que pudesse crer.

m- O que aconteceu?

p- Foi longa, interminável. A coisa pegou fogo quando o médico jovem disse ao mais velho que uma imagem vale mais do que mil exames físicos.  Um show de narcisismo, cada um arraigado a sua imagem.

m- Senhor paciente, estou gostando de ver que o senhor anota tudo no prontuário, afinal o prontuário é do paciente não? O médico pode selecionar o que escrever, é por isso que está cheio de termo de consentimento por aí, não é mesmo?

p- Mas lembre-se meu doutor, o prontuário do paciente é um seguro do médico… Temos 30 segundos, Dr. Galeno.

m- Senhor paciente, que remédio a sua alta experiência de paciente renomado vai receitar para a minha mania de achar doença nos outros?

p- Estava pensando em lhe prescrever umas férias…

m- Senhor paciente, é exatamente o que eu queria ouvir… Minha mulher vai adorar quando eu contar para ela… Vai cuidar para que eu siga à risca…

p- Alta chance de parar de manifestar a mania, aliás, quando funciona é a única com evidências, é recomendação classe 1, nível A, na diretriz da prevenção do burnout.

m- Senti firmeza, já me sinto melhor.

p- Então até a próxima.

m-Uma última coisa, senhor paciente, percebo uma palidez no seu rosto e nas mãos, o senhor não estaria com anemia?

p- Doutor, o meu colega da primeira opinião estava certíssimo com o seu diagnóstico… O senhor está com forte recaída. Urgente uma dose concentrada de férias em bolus na veia!

O próximo, ficha 14, verde!

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES