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1090 – Bioética e exames consagrados pelo tempo

AB homem, 50 anos, vai à primeira consulta no hospital e passa por anamnese, exame físico, eletrocardiograma, radiografia de tórax e exames de sangue e urina. AB não recebeu informações sobre características de cada exame, nem foi solicitado a assinar um termo de consentimento.

O bioamigo surpreendeu-se com esta observação? Não é preciso consentimento livre e esclarecido! Deverá exclamar a maioria dos clínicos em uníssono. Não precisaria? Poderá indagar alguém envolvido com a Bioética.

O exposto adquiriu uma autorização subentendida, um consentimento implícito do paciente em ausência de conflitos. Faz-se a comunicação de que exames serão efetuados, mais uma formalidade do que preocupação por aceitação ou recusa.

Os exames apontados associam-se a padrões de beneficência reconhecidos pela sociedade, possuem sintonia com a vontade do paciente e incorporam a expectativa pela solicitação como um dever profissional para com as necessidades de saúde, mais especificamente na área da Cardiologia.

O contexto de não suscitarem conjecturas de limitações expõe a dimensão tempo como fator influente no aspecto ético da aceitação/recusa do paciente por ocasião do exercício da propedêutica. Representa o consagrado pelo tempo da medicina incorporado à sociedade.

Bioamigo, desde há muito, o árbitro tempo determina ajustes de comportamentos na conexão médico-paciente ao binômio ciência- humanismo e permite a travessia pela ponte de Potter (Van Rensselaer Potter, 1911-2001) pela via expressa da não maleficência.

Os exames clássicos – pelo que determinaram este adjetivo- passam com o dístico Sem Parar pelos pedágios de Bioética ao longo da ponte. É fato considerado em embates éticos sobre carências do clássico e excessos do moderno.

A conjugação principialista beneficência/não maleficência/autonomia que exibe muitos contrapontos (a)casos a (a)casos na beira do leito, portanto, admite ilhas de apriorística convergência dos princípios da Bioética  e que se consolidaram geração após geração. O exame complementar como o paciente AB realizou desenvolveu-se na primeira metade do século XX e não trouxe maiores preocupações éticas.

Como intuído por Potter, a partir da segunda metade do século XX, as inovações do desenvolvimento da medicina trouxeram preocupações quanto ao equilíbrio ciência-humanismo na conexão médico-paciente. A distinção entre o paciente ao dispor da medicina e o médico à disposição do paciente elevou o direito do paciente ao princípio da autonomia, um instrumento da salvaguarda da aplicação da beneficência/não maleficência específica perante desejos/preferências/objetivos/valores do paciente, não  importa o quanto o tipo de decisão possa parecer equivocada na óptica do médico. A impessoalidade da evidência científica que se armazena no texto de um livro, de um periódico ou de uma diretriz clínica foi instada a humanizar-se no contexto da prudência individualizada na beira do leito.

Os métodos propedêuticos herdados como clássicos tornaram-se hábitos, ou seja, o presente os reproduz como se deu no passado como exames beneficentes/não maleficentes, um patrimônio “tombado” da sociedade. Eles geram poucas imagens numa telinha, contudo boa imagem na sociedade.

Esta “contemporaneidade” do passado com o presente aplicável a todas as faixas etárias distingue os exames realizados pelo paciente AB  no hospital daqueles que surgiram nos últimos 50 anos visando ao benefício da acurácia diagnóstica, contudo, porque novos, exigentes de apreciação individualizada sobre riscos de danos.

A depuração das obscuridades pela sociedade ao longo do tempo dos métodos mais recentes em ciências da saúde é praticamente automática e vemos que em poucos anos a complementação diagnóstica por ultrassonografia, tomografia e ressonância – claustrofobia à parte- incorporou-se com enorme aceitabilidade na sociedade.

Bioamigo, o mais clássico da propedêutica em ciências da saúde é a anamnese. Potencial de malefício de uma anamnese para o paciente? Inimaginável! O paciente tem o controle da comunicação, por mais que haja o interrogatório (palavra não muito condizente com a Bioética) complementar, o médico só será informado do que o paciente lhe disser. Na anamnese não há porque pressupor aspectos desrespeitosos às boas práticas da conjugação  beneficência/não maleficência/autonomia. O respeito ao sigilo profissional como preceito hipocrático, a sociedade aprendeu a confiar e a justa causa para a revelação ética, sendo rara e não previsível, não demanda a informação pelo médico sobre a possibilidade para o paciente. Exceções sempre existem, como podem ocorrer no contexto da Psiquiatria, por exemplo, quando o paciente é informado de que certas revelações poderão ser alvo de quebra do sigilo para preservar terceiros de eventuais intenções criminosas.

A anamnese por telefone – áudio fixo ou móvel ou teleconsulta- habitual adenda à anamnese presencial a intervalos de tempo variáveis, por sua vez, admite distintas implicações da relação risco-benefício, especialmente por exigências sobre a memória. Não agregar o conteúdo no prontuário do paciente pode provocar futura infringência da não maleficência, por exemplo, na comunicação de alergia a medicamento prescrito.  Quanto à autonomia do médico, poderá exercê-la ao disciplinar a anamnese não presencial numa teledistância: estabelecer um horário, dar limites ao diálogo, ou mesmo, não aceitá-la.

A anamnese do paciente capaz “auxiliada” pelo acompanhante demanda uma percepção aguçada por parte do médico. Contestações, novos fatos e sugestões precisam ser analisadas de acordo com a visão de beneficência/não maleficência, segundo a vontade do paciente. Esta poderá não ser superponível a eventual “aliança” entre médico e acompanhante para “o bem do negligente com a saúde”, o que causa muitos não-retornos “inexplicáveis”, comprometendo  assim a a eficiência da consulta – ela foi boa para quem?

É essencial perceber o endosso – ou não – do paciente às palavras do acompanhante e não pressupor que se o paciente permite a presença, é consentimento para uma ativa participação na anamnese. É situação complexa em muitas oportunidades e que coloca em jogo a responsabilidade do médico que sabe que o alvo da atenção é o paciente no exercício da liberdade para ter voz ativa sobre suas necessidades de saúde. É circunstância que requer o equilíbrio entre a razão, a imaginação e a analogia em duas vias dentro da conexão médico-paciente. Observei esta circunstância de anamnese “auxiliada” mais frequentemente quando o homem vai se consultar acompanhado da mulher “que faz questão de ir” ou quando o acompanhante é filho-médico na função de filho-pai. A maioria das intervenções do acompanhante é útil, o problema é o valor ético caso não reafirmado pelo paciente. O compromisso profissional fica imprensado entre a não maleficência para a pessoa do paciente e a beneficência presumida por outrem bem intencionado.

Como se sabe, considerar como uma mentira ou como uma omissão exige conhecer a verdade ou o fato, por isso, o aprofundamento sobre pontos de divergência precisa do paciente sempre partícipe, embora nem sempre seja fácil na prática. Na anamnese “auxiliada” pelo acompanhante cresce a chance de uma das partes sair insatisfeita da consulta com a conduta.

A anamnese em segunda opinião acontece não raramente em clima de subtração de informações por parte do paciente não desejoso de revelar “pistas” e ansioso por uma distinta “segunda primeira opinião”. Cada médico deve reagir com autonomia para as harmonizações e as dissintonias entre as opiniões. Certos aspectos da anamnese da segunda opinião ficam bem esclarecidas somente após um contato com o médico da primeira opinião.

Já em relação ao exame físico, a utilização dos órgãos dos sentidos como meio propedêutico é um contato humano “natural”, desenvolveu-se a partir do âmago do ser médico, atravessou séculos e adquiriu licença para percorrer a ponte de Potter sem necessidade de pormenores prévios ao paciente, em sua quase totalidade, apesar de poder causar sofrimento como dor à palpação, ou constrangimentos. O paciente se sente efetivamente atendido pelo médico, submetido diretamente a sua expertise, alvo da atenção profissional. O trio visão, audição e tato torna objetiva a conexão médico-paciente e etiqueta-se ético.

O estetoscópio há cerca de 200 anos é símbolo do vínculo médico-paciente, aliás nasceu assim, quando René-Théophile-Hyacinthe Laennec (1781-1826) inventou-o na frente de uma paciente gestante “sem janela” torácica para colocar diretamente o seu ouvido. O estetoscópio teve uma infância receptiva, pois os pacientes passaram a preferir consultar-se com os médicos que se capacitaram ao seu uso em Paris e que traziam no bolso para suas cidades. Ele cresceu com a sociedade reconhecendo-o útil e eficaz, e, assim, o consentimento tornou-se tácito, dispensando informações e esclarecimentos pela simples presunção de beneficente/não maleficente. O paciente espera que aconteça a ausculta, entendendo como demonstração de prudência – não há comunicação sobre a possibilidade de contaminação bacteriana cruzada. Pelo clássico, nenhum editor de revista exige a descrição técnica do exame físico como faz para altas tecnologias, e bioamigo, baixa tecnologia o exame físico não é, definitivamente.

O centenário eletrocardiograma faz parte deste bloco pré-autorizado pelo tempo. Em ocasiões raras, contudo, ele suscita alguns esclarecimentos, não espontâneos, mas provocados pelo receio de alguns pacientes, cada vez mais raro, com a possibilidade de receber choque elétrico pelo corpo. Nada mais parece obstar quanto a não maleficência na óptica do paciente.

A radiação da radiografia do tórax deveria exigir um consentimento pós-esclarecimento para bem aplicarmos fundamentos da Bioética clínica. Ademais, subgrupo que merece atenção é o das crianças, mais vulnerável aos efeitos da radiação. Em protocolos de pesquisa, a eventual presença de radiografia do tórax influencia a determinação do risco do projeto para o voluntário de pesquisa. Na prática, o passado centenário da convivência da sociedade com o método sem alardeamento dos eventuais malefícios da radiação, parece ter dispensado este “respeito ao consentimento do paciente”, que se observa, por exemplo, mais modernamente, pelo acréscimo de contraste para captação de imagens. O comportamento indiferente à radiação (presunção de beneficência isenta de malefício) é observado, inclusive, em circunstâncias de radiografias seriadas para acompanhamentos evolutivos.

Na coleta de sangue para exames “de rotina” não se costuma dar um esclarecimento ao paciente sobre o destino de cada ml de sangue coletado, bem como sobre o significado clínico de cada um dos exames. Não parece passar pela cabeça do médico que o paciente recusar-se-ia a coletar sangue para a dosagem de creatinina, porque não desejaria saber como está a sua função renal, por exemplo.

Já para exames que admitem aspectos morais, a trajetória é diferente. O bioamigo que vivenciou a história da AIDS desde os seus primórdios na década de 80 do século XX, sabe bem sobre as implicações éticas da coleta de sangue para sorologia HIV carregando aspectos de estigmatização. O efeito beneficente/não maleficente do tempo tornou o impacto decrescente e se aproxima da solicitação para reações sorológicas atuais para a sífilis, muito diferente do que acontecia na época da introdução da reação de Wassermann (August Paul von Wassermann, 1866-1925)- datada dos primórdios do século XX.

Em suma, Potter temia a falta de diálogo entre as ciências e as humanidades e desejou uma via de comunicação, uma ponte bem sinalizada pelas relações de risco-benefício. Os exames consagrados pelo tempo, aceitos- e por que não dizer, exigidos – pela sociedade como prudência do médico com o dístico Sem Parar pelo pedágio da Bioética  , rótulo de seguros para o futuro da humanidade.

Para os demais métodos propedêuticos da modernidade, a Bioética é excelente fórum cooperativo para conscientização do risco-benefício coletivo e individualizado.

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