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1089- A intoxicação de Píndaro

O telefone tocou às 3 da manhã no descanso dos médicos. Meu doutor atendeu. Sou o esteto dele há 15 anos, conheço todo o tipo de paciente e me considero um elo da conexão médico-paciente. Minha função justifica o meu doutor invadir a distância íntima do paciente, aliás, nasci na França  pela necessidade de um exame do coração numa grávida com mamas bem desenvolvidas. Capto sons ocultos e revelo diagnósticos. Tenho um dia-a-dia trabalhoso, mas gratificante. Se fosse escritor, poderia lançar um livro com as histórias interessantes que vivenciei com o meu doutor. Já ouvi que ele  que está com vontade, quem sabe um dia…

Eu estava em cima da mesa  bem ao lado do telefone, ouvi tudo.

– Alô!

-É a dona Maria, a paciente que vocês atendem aí no hospital, o senhor me deu uma receita com uns remédios para eu tomar…

– Dona Maria… Não me lembro…

-É o doutor, né? Lembra sim, o senhor estava de jaleco branco, foi muito atencioso, me chamava sempre pelo nome e se despediu dizendo que desejava me rever em um mês, muito gentil.

-A senhora me desculpe, mas é que por coincidência, nesta semana eu atendi outras pacientes também chamadas Maria. É Maria do que?

-Só Maria, minhas irmãs que são Maria Aparecida e Maria José, e meu irmão ao contrário, José Maria Aparecido, eu sou só Maria.

– Não importa. Dona Maria o que é que está acontecendo a esta hora, será que eu me esqueci de lhe receitar um remédio para insônia?

Conheço o meu doutor, ele já estava irado. Percebeu que não voltaria mais a dormir, que era melhor ir rever os pacientes e me pôs no ombro com a mão que não segurava o telefone e que estava quase brigando com a outra para devolver de imediato o bocal ao gancho. Então, só pude ouvir o meu doutor.

-Não com a senhora? Quem?… Píndaro?

-O quê?

-Ele tomou os comprimidos de digoxina? Tomou quantos?

-Uns quatro?

-O Píndaro está amarelo, dona Maria?

-Verde?

-É melhor a senhora trazê-lo imediatamente, dona Maria, não espere amanhecer.

– Que horas foi que ele tomou?

-Entendi, durante a novela, a senhora não gosta que ele fique por perto porque ele fala muito e atrapalha.

-A propósito, me esqueci de perguntar, quantos anos tem o Píndaro?

-Dois anos?! Dona Maria, traga o Píndaro agora, este remédio mata!

-Não Dona Maria, não se preocupe, a senhora toma só um comprimido por dia. Ele só faz mal se tomar vários comprimidos de uma só vez.

-Traga já seu filho, dona Maria.

-Não é seu filho? É neto?

– Também não?

– Seu pa-pa-ga-io, Dona Maria!!!!

 

 

 

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