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1088- A beira do leito do Junior

Sétimo andar do Hospital de Cardiologia. Eram dez da manhã e o sol forte iluminava o leito 713, o mais próximo da janela, ocupado pelo Junior. João Carlos Silva Junior tinha já 31 anos e quando perguntado sobre a profissão, respondia desempregado. Não lhe agradada confessar que nunca trabalhou e parecia que seria sempre assim.

Quando moleque, ainda podendo ser travesso, tendo dor de garganta frequente segundo a mãe porque tomava muito gelado, teve dor nas juntas, primeiro no braço, depois na perna. Junior entrou na adolescência como mais um brasileiro com válvula do coração doente pela Doença Reumática. .

Sempre baixinho e magro, nunca bem disposto, Junior volta e meia estava internado.  Era um bom filho, supria a falta de pai na medida do possível e uma vez por mês, o dia marcado a lápis vermelho na folhinha da cozinha, ia à farmácia acompanhado da mãe.

Junior odiava tomar aquela injeção no bum bum, doía muito, mas pensando bem, o que doía mais era ficar sentado, correndo atrás da bola com os olhos. Não faltava a nenhum jogo naquele campo improvisado, o que faltava, e como faltava, era o ar para respirar, dispneia como aprendeu dos médicos e incorporou ao seu vocabulário.

O nosso amigo adquiriu prática de paciente de hospital e não perdia a oportunidade de se mostrar. Na sala de espera do ambulatório, com ares de recém-formado doutor sabetudo olhava fixo para outro jovem e indagava: – Você sabe o que é dispneia? Nem esperava a resposta e esclarecia.

O Junior era popular, conhecia todo o mundo no hospital, quase batia ponto e imaginava-se com um crachá. Sentia-se parte da instituição. Os funcionários sabiam, não era segredo, que ele tinha uma lesão na válvula mitral que o tornava incapaz, claro que com a ajuda de certa preguiça de estimação, habituara-se. Aquele ócio seria de dar inveja se não fosse por doença.

Um dia apareceu uma dor de cabeça que não o largava; emagreceu, ficou ainda mais pálido, perdeu os jogos de futebol da semana, o que era preocupante. A mãe levou-o à farmácia, farmacêutico de  estrita confiança, aliás da maioria das pessoas do bairro, convidado habitual de aniversários. Logo o profissional percebeu que Junior, sem dúvida, estava com febre. Recomendou um remédio, genérico, por sinal, funciona igual.

Naquela noite, Junior tremeu todo feito um terremoto, sentia um frio danado apesar do calor de dezembro daquele quartinho sem janela e com uma enorme bandeira do seu time de coração – não importa a situação- na cabeceira. Para controlar a crise, foram precisos três cobertores – um emprestado às pressas do vizinho – e cinquenta gotas do genérico, a dipirona.

Às cinco da manhã, o Junior ainda bem alquebrado, já estava no ponto do ônibus, louco para que ele chegasse para poder se sentar, e uma hora depois batia um papinho com o Fidelis, o porteiro do hospital, velho conhecido que lhe quebrou o galho para entrar antes da hora, amigo é para estas coisas, nada de fila, porta aberta para o crachá imaginário.

Foi uma viagem só de ida. Sentou-se na sala de espera ainda vazia, reconheceu o cheiro de hospital, acompanhou os funcionários chegando e assumindo os postos, o local transmitia-lhe  segurança, realizava-se o almejado no sonho acordado da noite anterior. Após a consulta fora de dia, aliás Junior foi logo atendido quando o médico chegou. O Dr. Silveira num olhar de relance percebeu o paciente pálido e ofegante, levou as mãos aos seus ombros (dele médico) para dispor do esteto enquanto se informava do que se passava e rapidamente Junior ganha uma hipótese diagnóstica e os papéis para imediata internação num leito vago de noite, aliás uma alta a pedido que alvoroçara o andar.

 -Lembra do Junior? Tá de volta, consegui uma vaga pra ele, é meu paciente desde que fiz estágio na enfermaria, ele me ensinou muito sobre ausculta de sopro no coração e terceira bulha… O Junior tinha quem cuidasse dele, era grato ao SUS.

No elevador Junior, que fazia questão de movimentar a própria cadeira de rodas fornecida ainda no ambulatório, brincou com a ascensorista, a Solange que tinha no currículo a condução de muitas personalidades, mas que nunca mencionara pra ninguém, nem para os familiares, ciosa da ordem que recebera à admissão no emprego a respeito do compromisso com o sigilo profissional.

– Oi dona Solange, este carro passa no sétimo andar? Aceita bilhete único?

 – Só para pessoas especiais. Mas o que foi que aconteceu, Junior, desde quando está arfando?

 – A senhora aprendeu  a fazer anamnese, né? Também transportando tanto médico todos os dias!

– Pois é Junior, elevador de hospital é uma rede social, espalha de tudo e eu ouço de tudo, as pessoas me coisificam, é como se eu fosse um acessório do elevador vindo de fábrica. Ontem mesmo um médico que nunca tinha visto me perguntou se eu era ascensorista só ou também descensorista… Pode? Tive vontade de travar o elevador no meio dos andares para que ele soubesse que sou também paradista.

– Dona Solange vou facilitar a pro-pe-dêu-ti-ca para a senhora, tô com en-do-car-di-te in-fec-cio-sa. O Junior pronunciou degustando cada sílaba. Um douto paciente.

–  Você sabe o que é isso? Junior.

 – Claro que sei, é um negócio esquisito que apareceu no meu coração, bem na válvula do reumatismo e faz a cama tremer.

 -Não é malária? O meu pai teve e tremia…

– É en-do-car-di-te in-fec-cio-sa. Diagnóstico de certeza.

– Ah! Entendi. Que chato! E ainda tem que internar.

 – Eu não me importo, o pior é que vou ter que passar pelo dentista! O doutor me disse que era pru…dente.

 -Não diga!

 – É que o doutor disse que um bichinho entrou no sangue pelo meu caco de dente, como tenho vários, ele não sabe exatamente qual que foi, e depois foi parar lá dentro do meu coração. Olha a minha boca, tá vendo eles?

 -É tô vendo, mas fica frio…

 -Com febre é difícil…

 – Quando você sair de alta eu te dou uma escova de dente novinha, azul, tá bom? Chegamos Junior, vai firme, tudo de bom.

No dia seguinte, o Junior era o centro das atenções, já conversara com os amigos: o médico-residente, as enfermeiras, a técnica que vem tirar o sangue, a moça que traz a bandeja da comida de hospital sem sal e até deu umas dicas pro vizinho de leito calouro em internações.

Na hora da visita médica, o Junior prontamente se posicionou no leito. Ele sabia de cor e salteado o seu papel de paciente. Quando chegou a sua vez, trocou olhares de cumplicidade com o residente, que ele não se preocupasse na apresentação ao assistente, um amigo ali estava para dar a maior força. O Junior se achava mais escolado em problemas de válvula do coração do que aquele doutorzinho recém-formado que iria contar a sua história clínica lendo o que o médico do ambulatório tinha escrito.

Os estetos já estavam deslizando pelo seu peito boa janela de ausculta, quando a atenção do Junior se voltou para a porta do quarto. Ficou intrigado com a presença de um senhor de semblante calmo, olhar profundo, meio calvo, bigode branco, postura britânica que procurava acompanhar a visita, meio escondido atrás daquele batalhão de aventais brancos com canetas, carimbos e celulares nos bolsos, o kit-C.

Junior estava olhando tão fixamente para o estranho que todos pararam o exame e se voltaram, curiosos, para a porta. Ninguém sabia dizer de onde surgira aquela simpática figura.

Pela deixa dos olhares, meio constrangido, o recém-chegado se apresentou com um sotaque bem carregado: – Desculpe, meu nome é William e sou médico, embora não tenha o número de CRM como vocês têm nos carimbos. Soube que havia aqui um caso de endocardite bacteriana, posso acompanhar a visita?

Todos concordaram com  a adesão à visita, coleguismo não faltava naquele hospital, e, inclusive o Junior verbalizou o seu consentimento em nome do princípio da autonomia, seu direito afinal de contas. Umas boas-vindas ao visitante que não parava de franzir as grossas sobranceiras, demonstrando surpresas, e fazendo anotações uma atrás da outra.

O esperto Junior com um gesto quase imperceptível convidou o ilustre desconhecido para se aproximar do seu leito. Ele estava admirado pelo interesse de um estrangeiro no seu caso. Cuidou para fechar bem  a boca para não expor os cacos, não ficaria bem. Teria muito que contar pros amigos lá do bairro, quem sabe até seria entrevistado e poderia vir a ficar famoso fora do hospital.

A visita médica prosseguiu e o médico-assistente fez uma exposição sobre o diagnóstico de certeza da endocardite infecciosa com a ecocardiografia e sobre a antibioticoterapia. Como todo bom brasileiro, o Junior logo deu um jeito para ficar numa posição para ler o que aquele gringo escrevia naquele bloquinho já quase cheio. Não pergunte como, mas Junior conseguiu entender alguns rabiscos: a endocardite bacteriana já tem cura, chama-se penicilina e dá para ver vegetação sem necropsia, deixou de ser lenta e crônica.

De repente, como numa inspiração, o médico-assistente pegou a mão direita do Junior, começou a examinar um dedo e disse para todos, elevando um pouco a voz: Aqui temos um nódulo de Osler, ele foi descrito pelo grande médico William Bart Osler  em 1909, vejam, é uma lesão eritematosa, um pouco dolorosa – O Junior confirmou.

Após todos examinarem o dedo do Junior, pera aí! Cadê o visitante? O Dr. William sumira! Nem o Junior que ficou bem ligado nele apesar da dorzinha das palpações percebera, o bigodudo evaporara!

A visita terminou e nosso herói não cabia em si de contente. Junior resolveu ir ao banheiro e quando se levantou  com todo o cuidado para reposicionar o suporte da infusão do soro com penicilina deparou com um cartão na sua mesa de cabeceira com dizeres manuscritos:

Junior nem imaginava o quanto havia ensinado para o visitante, a maior autoridade em endocardite infecciosa de sua época, que descobrira o nódulo que levava o seu nome e agora, que era imortal, aprendera graças a ele, Junior, que a doença que mais estudara na transição do século XIX para o século XX tinha diagnóstico clínico de certeza e tratamento!

Grande Junior! Ao mestre, com carinho.

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