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1087- O esteto velho de guerra (Parte 2)

livro-memorias-d-um-esteto-max-grinberg-14322-MLB3731009060_012013-FBula2           Continuação da Parte 1

Um dia desses fiquei bastante apreensivo. Ouvi o doutor comentar que todo mundo tem um terceiro ouvido e que ele guarda palavras ditas aparentemente sem importância e que mais tarde vêm à tona e se tornam chaves para se entender o que estava realmente acontecendo. Imaginei que logo me tornaria obsoleto feito o meu avô monoauricular. Mas ele percebeu minha aflição e explicou que o terceiro ouvido fica dentro do cérebro e que não tem orelha. Nada de estetoscópio triauricular. Ah, que alívio!

Sou bem humorado, mas fico triste e solitário quando o meu doutor sai de férias e me larga na escuridão do fundo da gaveta. Antes de sair ele se despede e tenta se justificar que se me levar, adeus descanso. Vou fazer o quê, se ao menos eu tivesse aquele walkman…

Semana passada tomei um susto. Foi quando ouvi os berros de uma paciente que não se conformara que não estava doente. Ela foi consultar mais outros três médicos, até que o último finalmente conseguiu descobrir o seu mal. Falou, falou, e de repente sobrou para mim. Olhou feio e me mandou ir aprender com aquele outro esteto que mal lhe tocou e pronto já tinha a solução do seu problema. Fiquei quieto, vai explicar a tal da iatrogenia no prolapso da vala mitral…

Uma vez num Congresso de Cardiologia, eu era todo ouvidos a uma discussão que acontecia numa mesa-redonda. Os doutores do transdutor afirmavam que eles faziam o diagnóstico em todos os detalhes. Até citaram como argumento os pneumologistas e suas incríveis imagens. Fiquei vermelho de raiva quando alguém com ironia pronunciou o meu nome distorcido com ênfase na primeira sílaba – ex-tetoscópio. Os clínicos disseram que eu era parte essencial do exame físico. Todos queriam falar ao mesmo tempo. O moderador parecia juiz de tênis de mesa, direita-esquerda, esquerda-direita, a cabeça para lá e para cá tentando organizar a bagunça. Percebi que ninguém conseguiu convencer ninguém. Parecia até as torcidas vestindo cada uma a camisa do seu clube sempre o melhor.  Nunca vi trocarem de time depois do jogo. O melhor de tudo foi um aparte da platéia que fiz questão de anotar: o esteto sobrevirá sempre para o bem da relação médico-paciente. Aquilo calou-me fundo, me dei conta que sou um símbolo do duplo sentido de direção que o bom atendimento médico exige. Nada mais justo!  Agora que vocês já me conhecem melhor, permitam-me contar um segredo.: tenho ciúme do aparelho de pressão. Já explico. Este meu colega vive dizendo que é muito mais útil do que eu e ainda por cima petulante exige que eu o chame de esfigmomanômetro., senão ele me chama de aparelho de ausculta. Bolas, sou eu quem na verdade marca as mudanças de som. Ele faz um trabalho secundário, mostra números. Quando eu digo isto na cara dele, ele dispara: o doutor fica olhando só para mim, são meus os números que ele anota, o doutor pode saber a pressão sistólica sem você. Aí eu retruco que ninguém  pode me dispensar para a diastólica, que afinal é a mais importante! Ainda bem que tirar pressão é vapt-vupt e agente logo se separa. Mas quando nos deixam juntos em cima da mesa, fecha o tempo.

Esperem, um momento! O meu doutor está correndo. Ele agora tirou-me dos ombros, pos-me nas costas do paciente que chegou muito mal. Opa, estou escutando estertores até o ápice. Não há dúvida, é um edema agudo de pulmão.

Depois desta, respondam todos vocês em alto e bom som. Quem mais pode fazer este diagnóstico de emergência?  Quem? Vamos, fiquem à vontade. É isso mesmo, mais ninguém, apenas eu, o esteto velho de guerra.

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