PUBLICAÇÕES DESDE 2014

1086- O esteto velho de guerra (Parte 1)

O alívio humorístico é bem-vindo à habitual tensão da beira do leito. Ele empresta leveza à seriedade. Pode até relativizar a ética, mas não a suprime pois tem base em verdades, agora vistas pelo ângulo do bom humor visando a um bem-estar. Sua simplicidade está em se contentar em ser engraçado.

Há cerca de seis anos perdemos o amigo George Washington Bezerra da Cunha (1945-2015), farmacêutico, companheiro de vários textos bem-humorados sobre temas da saúde. Uma coautoria de dois brasileiros com nomes estrangeiros, um cearense e outro carioca radicados em São Paulo, Bula MEatendendo no InCor pacientes dos diversos estados do Brasil.

O livro Memórias d’ um esteto, publicado em 1999, livro-memorias-d-um-esteto-max-grinberg-14322-MLB3731009060_012013-Fcoleciona capítulos em linguagem descontraída acerca de cenários de ambulatórios, enfermarias e corredores de um hospital de ensino. No prefácio, o Prof. Dr. Adib Domingos Jatene (1929-2014) escreveu “… Na condição de professor universitário reconheço aqui um material didático bem graduado (e pós-graduado) para a discussão de aspectos psicossociais embutidos na assistência à população...”

O blog bioamigo presta uma homenagem ao saudoso George Washington publicando a apresentação do Esteto consciente que o humor é uma das virtudes refletidas no espelho da Bioética da Beira do leito.

O ESTETO VELHO DE GUERRA

 Muito prazer, estetoscópio, mas podem me chamar de esteto. Sou mestre em escuta, ou melhor, em ausculta. Meu nome é de origem grega, significa do peito, por isso sou o amigo do peito do meu doutor. Trabalho com ele, aonde ele vai, eu chego junto. Como sou meio desengonçado, ele costuma me carregar pendurado nos seus ombros. Quando estou de papo pro ar, gosto de xeretar o bolso do seu avental que fica ali bem pertinho e às vezes troco uma ideia com suas canetas.

Conheço todo o tipo de gente, cardiopatas, enfisematosos, hipocondríacos. Os bem mais amigos conheci quando eram sopros fracos e hoje são fortes e evoluídos.

Recebo e transmito os sons da vida. Sou o primeiro a examinar o recém-nascido, o último a constatar o óbito. Como vocês sabem, o corpo não é silencioso. Já perdi a conta de quantos ruídos diferentes achei, alguns monótonos, outros vibrantes e uns meio esquisitos.

Devo confessar que tenho alguns sons prediletos e o que eu mais desejo é um walkman com uma fita cassete todinha com eles. Divirto-me imitando um trem quando escuto uma locomotiva, um avião quando uma gaivota, um cavalo com o ritmo de galope, um soldado com o ruflar de tambor  e chego até a fazer aeróbica ao som do murmúrio vesicular. Mas o atrito é terrível e me causa arrepios. Em compensação, o ruído de prótese de disco é um verdadeiro heavy metal.

É muito comum que eu nada constate de anormal e assim logo estou de volta pro meu aconchego. Vibro nas emergências, põe aqui, põe ali, põe de novo, participo de cada etapa do atendimento. Compartilho a dor destes momentos à flor da pele, em todos os sentidos.

Choro quando os últimos ruídos cessam, mas, logo estou atendendo outro caso, motivado por um novo desafio. Tenho consciência da minha responsabilidade, o doutor só ausculta o que eu escuto. Orgulho-me de ser fiel, transmito o que realmente existe. A experiência que possuo é suficiente para em certas situações identificar ruído sobre ruído.  Canso um pouco quando é um tal de senta-levanta, deita-vira, respira-prende, aí eu preciso ter muita atenção.

Às vezes, morro de rir quando o doutor esquece de me colocar nos seus ouvidos. Tenho vontade de ficar balançando para ele perceber.

Tenho horror de ser emprestado. Tento me agarrar nos ombros do doutor como um bebê que nçao quer se desgrudar da mãe, mas não adianta. Lá vou eu visitar outros ouvidos.

Odeio quando meu doutor-professor me obriga a fazer turismo pelas orelhas de seus alunos. Dá uma vontade danada de me fingir de surdo, mas não consigo. Volto irritado e emburrado. Fico ansioso  esperando aquele algodão  com o que o meu doutor me limpa sempre. De vez em quando, ele me dá um banho de álcool alegando matar bactérias e vírus. Não sei se estava meio alcoolizado, mas acho que uma vez ouvi alguém dizer que os estetos poderiam ser agentes de infecção cruzada. Como não entendi bem, me liguei em ser um agente e massageei meu ego. Bem que esu estava precisando! Dias antes, um filósofo da objetividade do alto da sua sabedoria disse para o doutor que mais importante do que eu era o ouvido. Fiquei louco da vida, no fundo ele tinha razão, mas bem na minha frente! Que desaforo e ainda por cima tinha na mão um esteto todo moderninho.! Meu doutor não respondeu, acho que foi para não quebrar a hierarquia. Mas no íntimo sei o que ele pensa de mim. Percebi pela piscada, somos cúmplices de sons e de pensamentos.

Continua na Parte 2

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