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1080- Considerações sobre beneficência (Parte 1)

Um pouco antes da eclosão da atual pandemia fui convidado para conversar sobre o princípio da beneficência com um grupo de estudantes de medicina.

O objetivo principal era analisar o valor da pesquisa clínica para sustentar o potencial de benefício de um método terapêutico na beira do leito contemporânea.

O professor de clínica médica que promoveu o encontro expôs na abertura que eles estavam no internato e motivados pelas vivências inicias com pacientes internados a conhecer melhor sobre o compromisso do médico com as evidências científicas.

Eles estavam esclarecidos que evidências científicas eram, essencialmente, interpretações de conclusões de estudos sistematizados e observavam de modo repetido que nem sempre estavam disponíveis evidências científicas obtidas numa perfeita reprodução da situação clínica de que participavam junto com os residentes.

Logo pressenti a grande interrogação que dominava as mentes em formação profissional: considerando que a promoção do benefício é objetivo da medicina, a inexistência de evidências científicas mais correlatas ao caso inviabiliza eticamente uma conduta específica?

Fiquei animado. São justamente estas análises multidimensionais que energizam a Bioética da Beira do leito. Elas conectam o profissional da saúde às necessidades beneficentes do paciente, enfatizam os riscos de malefícios pelo potencial de adversidades e posicionam evidências científicas num plano superior a convicções intelectuais.

Dava para sentir que o meu colega professor de clínica médica havia criado enorme tensão pedagógica por um trabalho de conscientização daqueles jovens sobre a responsabilidade de serem agentes morais da aplicação da medicina de qualidade. Uma contribuição valiosa pois as evidências científicas são árvores frondosas, porém a visão clínica precisa abranger a floresta onde coexistem possíveis fontes de beneficência de fato realizada e de contratempos como atoleiros imprevistos e areia movediça desconcertante.

Resolvi aproveitar a tensão que emanava dos olhares fixos dos estudantes no apresentador e no apresentado- exceto uns dois ou três absortos nos celulares. Captei-a para um arco imaginário e lancei a flecha que rompe a camada de contensão que habitualmente se forma no estudante perante o professor. Impacto, reação, reforço do interesse. O arremesso certeiro corresponde à emissão da mensagem inicial que faça com que os ouvintes sintam que estou alinhado com suas realidades.

Firmar vínculo já ao início relaciona-se a uma habilidade que se encaixa no conceito de empatia e que, no meu caso, necessitou de muito vaivém de estratégias verbais, vocais e de postura corporal para iniciar e não fazer cair a conexão numa aula. Não é fácil competir o raciocínio pedagógico Celular Aulaanalógico com a atração visual do digital whatsapp (Quais são as novidades), este disruptivo da atenção numa aula posto na palma da mão dos alunos. Assim preciso inverter, tornar-me o mensageiro instantâneo mais valorizado do momento.

Presumindo todos nós mais à vontade, alterei as palavras inicias que havia preparado e sem nenhum introito lhes dei uma resposta-síntese da pergunta ainda não expressa mas sentida, numa construção como se estivesse me expressando no twitter.

Declarei, usando as flechas da minha aljava e forjadas no biopsicossocial, que o melhor da beneficência está atrelado ao valor das evidências científicas, mas que parodiando William Shakespeare (1554-1616) há mais coisas no céu e na Terra do que sonha nossa vã filosofia.

Imediatamente pude perceber a panela de pressão expulsar a borracha de segurança, um burburinho tomou conta da sala e braços ergueram-se simultaneamente sinalizando a liberação da vontade de se manifestar. Que bom, para interessar-se por levantar o braço é preciso desinteressar-se pelo celular. Iniciou-se a modalidade de encontro didático que me encanta pois pleno da autêntica interatividade que faz uma geração educar as seguintes. É estimulante quando é possível fazer o jovem enxergar com os olhos do mais velho, não para impor, evidentemente, mas para um ponto de referência sobre objetivos e valores.

Alguns pontos tornaram-se destaque: o especialista nem sempre conhece o que possa ser “melhor” para o leigo, há sérias dificuldades de prognóstico presentes na beira do leito, há limitações no cálculo de potencial de benefício versus potencial de adversidades, há alta conveniência contemporânea na participação dos valores do paciente no processo decisório.

É interessante repercutir para os jovens profissionais das ciências da saúde que há poucas décadas saber o que fazer na beira do leito estava nos livros e suas edições atualizadas de tempos em tempos. Hoje diretrizes clínicas comandam decisões organizadas por classes de utilidade e de eficácia de acordo com evidências conclusivas/evidências conflitantes/consensos de profissionais e por níveis de probabilidade de realização de acordo com estudos clínicos randomizados/meta-análises/estudos observacionais/opiniões consensuais de especialistas. Envolvem apreciações éticas e legais com aspectos passíveis de distintas interpretações.

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