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1065- Vagueza e beira do leito (Parte 2)

Bioamigo, suponha o caso do paciente que tenha infartado com valor sérico de LDL-colesterol de 135 mg/dl,  eventual redução para 134 mg/dl já desqualificaria como mau? E 133 mg/dl? E assim por diante… Haveria uma zona limítrofe acima da qual persistiria mau componente e abaixo da qual perderia a mesma adjetivação, se não mau, pelo menos neutro?

Seguindo a análise do paradoxo de sorites pelos defensores da chamada lógica epistêmica – exigente de alguma representação do conhecimento- algum valor numérico que possa determinar uma fronteira sólida do LDL-colesterol entre ainda mau e não mais mau é  impossível de ser precisada.

O clínico experiente sabe que é capital evitar a apreciação isolada do exame laboratorial, é obrigatória a associação da lipoproteína a um contexto etiopatogênico, o que já aconteceu sob a denominação de fator de risco- situação que eleva a probabilidade de ocorrência de uma doença ou agravo à saúde. Em outras palavras no contexto da beira do leito, para que o dado laboratorial seja cognitivamente significativo precisa estar ancorado por verificações clínicas empíricas. Idealmente, que um valor, ou faixa de valores, provoque mesmo efeito em casos semelhantes dentro da margem de erro. De modo bem pragmático, que a redução de valores do mau colesterol associe-se de modo significativo e universal a uma desaceleração do processo aterosclerótico.

A definição do LDL-colesterol como fator de risco para doença aterosclerótica tem poucas décadas, o que reforça a pertinência de uma adaptação do pensamento do filósofo Timothy Williamson (nascido em 1955) para a beira do leito: não poderia ter surgido uma diferença no significado etiopatogênico do LDL-colesterol sem que ocorresse uma diferença na aplicação clínica- potencializado pela introdução da estatina em 1987.

Por curiosidade, consultei o meu primeiro livro de cardiologia, a edição de 1968 de Paul Wood’s Diseases of The Heart and Circulation (Walter Sommerville – 1913-2005- assumiu a coordenação após a morte de Wood em 1962) e na página 817 consta: Se algum benefício resulta da redução sustentada do colesterol sanguíneo per se por meios dietéticos ou medicinais, ainda aguarda elucidação.

O termo redução empregado era vago – um objetivo- e hoje, passados mais de 50 anos, o conceito de baixar o impacto de risco resulta bem firmado na literatura científica, representa prudência no cuidado ético na beira do leito. Entretanto, carece ainda uma precisão sobre um valor de segurança etiopatogênica para prevenção secundária de eventos cardiovasculares, o que faz persistir uma indeterminação, muito embora o estado da arte atual estabeleça uma meta laboratorial- LDL-colesterol de 50 mg/dl, conforme orientado pelo estudo IMPROVE-IT.

O caminho que vai da imprecisão para a precisão – embora sem chegar exatamente ao destino final- sempre cheio de pedras e que dá trânsito com valor científico para aplicação na beira do leito é o da observação crítica e sistematizada do mundo real, quer pela assistencial organizada, quer pela pesquisa clínica ética.

Por meio delas, a vagueza de termos empregados na linguagem coloquial – como a palavra mau- pode ser reduzida por uma lógica imprecisa, portanto não clássica, de uma forma não aleatória. Os critérios conseguidos costumam ser de várias naturezas e um deles é o que admite valores de verdade entre 0 (não mau) e 1 (mau) como limítrofes entre mau e não mau. MauNão mau

A Bioética da Beira do leito reforça a necessidade de um treinamento do profissional da saúde  sobre comunicação ao paciente-leigo das imprecisões das ciências da saúde. É necessário fazer o paciente entender que o uso de recomendação precisa, dose precisa, tempo de uso preciso convivem com sombras de imprecisão, afinal elas se formam da clareza.

É interessante, neste contexto, que uma adaptação ao que Bruno Bettelheim (1903-1990) ensinou no livro Psicanálisis  de los cuentos de hadas: a antítese – lobo mau, madrasta, dragão- é pedagógica para compreender o bom, sustenta o racional para a afirmação médica que níveis reduzidos de LDL-colesterol podem deixar de  representar um mau para o corpo desde que se elimine o lobo – que nuca será bom-, se preserve o significado de mãe  e não se deixe de procurar o que possa representar um dragão dentro de si.
encardida

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