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1064- Vagueza na beira do leito (Parte 1)

A emissão de termos vagos como monte, estreito, alto, mau é comum na linguagem natural e chama a atenção sobre aspectos de lógica e de semântica. A menção provoca concordâncias ou discordâncias na recepção.

Uma consulta ao dicionário encontra que criança é um ser humano de pouca idade, uma vagueza que exige a regulamentação do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990): criança é a pessoa até os 12 anos de idade incompletos. No vôlei um líbero embora possa ter a altura média da população em geral é uma pessoa baixa pelo referencial do atleta habitual no tipo de esporte.

Assim, mesmo o emprego de uma ciência exata que permite medir a altura com precisão convive com indeterminações de significado, ou seja admite escalas em relação a contextos, enquanto que um documento oficial é necessário para dar uniformidade a apreciações sociais, culturais, psicológicas.

A vagueza deve ser distinguida da ambiguidade que se deve ou a uma polissemia ou a uma homonímia. Assim, o paciente está melhor é vagueza, o paciente-médico está no consultório do seu médico com o estetoscópio pendurado no pescoço é ambiguidade.

Um dos objetivos da aplicação das ciências da saúde pelo profissional da saúde é caminhar das indeterminações para as determinações, do vago para o concreto. É tarefa estimulante que encontra muitos limitantes.

As dificuldades de lidar com indeterminações são melhor compreendidas pela noção do paradoxo de sorites apresentado por Eubulides de Mileto no século IV ac. Se o bioamigo entender que 1000 grãos reunidos formam um monte, continuar assim entendendo quando for reduzido para 999, 998 e assim por diante, em que número deixará de entender como um monte? E a junção dos grãos retirados sob qual número atingido poderá ser nomeada como um novo monte?

Transplantando para a beira do leito, todos nós temos um monte de LDL-colesterol, a fração de baixa densidade que é vulgarmente considerada como mau colesterol. Após um evento cardiovascular, ao se identificar um valor alto de LDL-colesterol no dado paciente, ele passa a ser objeto de uma conduta de redução dos valores objetivando prevenção secundária.

O racional é que o excesso da fração de baixa densidade é fator de risco para doença cardiovascular, um conceito universalmente adotado. Em termos leigos, um monte de LDL-colesterol em excesso é um mau constituinte do corpo do paciente. Mas fica vago quanto de excesso precisou acontecer para que o monte se tornasse prejudicial.

A estratégia preventiva é modificar a má influência, o que significa providenciar para que o etiquetado mau colesterol não mais tenha uma quantidade que provoque um mau impacto no sistema cardiovascular. Em síntese, o adjetivo mau deixar de ser também um substantivo no paciente.

Uma das possíveis resoluções do paradoxo de sorites é a chamada supervalorização pela qual o termo vago- no caso do monte – vai sendo lapidado como verdade entre extremos. Assim, o espectro da vagueza fica contido quando o número atingido de grãos rejeita uma das duas premissas de extremo, por exemplo: propõe-se que 502 ou mais grãos definem um monte e que 398 grãos ou menos impedem a designação de monte.

Desta maneira, determinado número de grãos, ou menor do que 398 ou maior do que 502 rejeita uma das premissas – de não monte ou de monte-, caso não esteja no intervalo das condições. Uma semântica adotada para a circunstância intermediária é valor limítrofe (entre 502 e 398). Não resolve completamente, mas ameniza.

Voltando para a beira do leito, a maneira científica de aplicar a supervalorização ao LDL-colesterol é por meio de correlações entre níveis dosados no sangue e efeitos clínicos e/ou anatômicos. Em tese, se níveis altos do mau colesterol tiveram participação na formação das placas vasculares obstrutivas do evento, quais seriam os níveis mais baixos que deixariam de impactar negativamente? Quando, então, o rotulado mau colesterol “deixaria” de estar mau para o paciente.

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