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948- So…mente uma mentira (Parte 2)

Não faltam nos encontros profissionais na beira do leito fontes-surpresas caracterizadas por contrastes, contradições, controvérsias, desvios, sutilezas, disfarces e imprevisibilidades. Elas ampliam a pluralidade de destinos das condutas.

A Bioética da Beira do leito reforça que, na verdade, a necessidade de lidar com tanta variedade de cenários acaba sendo pedagogia para uma autovigilância de extremo cuidado de atuação dos profissionais da saúde idôneos. As sequentes adequações entre teoria e prática acontecem numa calibragem de respeito a contraposições entre Oscar Wilde (1854-1900): À medida em que as pessoas concordam comigo, eu sinto que posso estar errado e François de La Rochefoucauld (1613-1680): Raramente percebo bom senso em quem discorda de mim. 

O destilar  do amadurecimento profissional desde os recortes traiçoeiros causados por estes obstáculos acompanha-se do risco de desagradáveis preços a pagar enfeixados como possibilidades de fomentar suspeitas leigas de má atitude profissional porque é difícil satisfazer a todos diante de conflitos.

Uma motivação da Bioética da Beira do leito é o destaque para o incerto. Assim, ambiguidades e vaguezas, duas indeterminações linguísticas de alto impacto na beira do leito são do seu interesse. O perigo está no modo como elas fazem o profissional da saúde reagir, em especial, se açodadamente interpreta a obscuridade ao seu modo e assim prejudica o compromisso com o entendimento.

De fato, na ambiguidade há mais de uma possibilidade de significado para a palavra emitida pelo paciente, embora cada uma delas tenha o seu significado preciso – doutor, é uma dor que não passa (dor física ou dor moral?). Já na vagueza, há incerteza em delimitações – doutor, dói tudo, detesto sentir dor, mas evito analgésico (até qual limite?).  

Diríamos que o par livre e esclarecido que acompanha o conceito do consentimento do paciente vale para a captação da anamnese pelo profissional da saúde, com a diferença que no paciente pode ficar numa presunção e no profissional da saúde exige-se de fato, sob risco de virar etiopatogenia para má-prática na beira do leito.

A Bioética da Beira do leito pressupõe maior potencial de risco quando as indeterminações associam-se a inverdades. É combinação explosiva. O bioamigo certamente já lidou com mentiras do paciente, emitidas, por exemplo, por conveniências e intencionalidades e sentiu como desrespeitam a boa-fé do profissional da saúde, quer quando omitem informações, quer quando dissimulam falsidades. O ato de mentir requer maior planejamento mental e uso de recursos cognitivos, o que pode gerar indicadores não verbais que o cotidiano da beira do leito vai ensinando a perceber. O profissional da saúde costuma desenvolver um sexto sentido para a mentira e que exige cautela na reação.

Costumam ser embaraços amargos os envolvimentos profissionais com insuficiências ou falsidades de comunicação desde o paciente. Uma antítese da boa-fé que caracteriza o profissional da saúde ético, situação que a Bioética da Beira do leito  pelo propósito de abordar temas delicados da conexão médico-paciente dispõe-se a colaborar como um refúgio vantajoso. O uso dos alicerces da Bioética da Beira do leito energiza enfrentar desentendimentos entre razões da ciência  – calcados em verdades- e corações do ser humano- sujeitos a inverdades.

Se é bem admitido que o médico está sujeito a penalidades por mentir profissionalmente, embora com exceções compassivas, é entendimento moral que não se aplica desta maneira para o paciente.  Se faltar com a verdade sobre seus sintomas ou sobre a sua adesão a condutas, infere-se que o paciente será o próprio prejudicado e deve ficar isento de juízos moralizantes.

Lembro-me que o professor Danilo Perestrello (1916-1989) de Medicina Psicossomática na Clínica do professor Clementino Fraga Filho (1917-2016), na Santa Casa do Rio de Janeiro, usou uma tradição entre pais e filhos para nos conscientizar da chance de mentira na anamnese: Papai do Noel é uma mentira que o adulto entende que deve ser uma verdade para a criança, uma semente em solo fértil. A observação deve ter ficado gravada no meu terceiro ouvido http://publicacoes.cardiol.br/portal/portal-publicacoes//Pdfs/ABC/1985/v45n5/45050001.pdf, pois só recentemente veio à mente com sua força moral quando me interessei sobre o impacto ético de mentiras na beira do leito.

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