O recém-médico percorre diariamente um Trajeto do Não na beira do leito. Pois a orientação vem como: Não prescreva sem examinar o paciente; não solicite exames desnecessários; não esqueça de carimbar; não dê nenhuma certeza de resultado; não pratique o que não sabe. Já o aprendizado faz-se por um raciocínio matemático: multiplicando menos (não, por exemplo) com menos (sem, por exemplo) dá mais. Assim, o contexto “muda de sinal” e torna-se: prescreva após examinar, solicite o necessário, lembre-se de carimbar, comente as opções de resultado, faça o que sabe. É forma de linguagem mais afinada com o processo de diagnóstico e de tratamento na beira do leito. Os europeus perceberam, por exemplo, que é mais pedagógico dar ênfase no que pode ser feito (classes I e II) e suprimir o que não é para fazer (classe III), em diretrizes clínicas. O valor do afirmativo na sistematização.
O Código de Ética Médica é composto de 25 princípios fundamentais do exercício da Medicina, 10 normas diceológicas e 118 normas deontológicas, estas últimas com o caput É vedado ao médico. A transgressão deontológica sujeita o médico às penas disciplinares previstas em lei. Muito embora a sequência de artigos 1 a 118 tenha forte ligação com os Princípios e os Direitos, observa-se o poder de Proibições na prática da Ética no Brasil.
Historicamente, o estilo de redação utilizando É vedado ao médico foi introduzido há pouco tempo, no Código de Ética Médica lançado em 1984. Até então, nos Códigos predecessores, a abordagem pelo lado da proibição era exceção. Como acima mencionado, é vedado deixar de fazer (dupla negativa) necessita ser decodificado para aprendizado como deve ser feito (afirmativo). Assim sendo, É vedado ao médico tratar o ser humano sem civilidade ou consideração (art. 23) reproduz o Princípio fundamental VI – O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade.
Poder-se-ia, então dizer que os textos dos 118 artigos deontológicos apresentam-se na medida punitiva, sustentadores da apreciação de infrações éticas, enquanto que aplicações para fins de aconselhamento de como ser médico ético brasileiro ao recém-médico envolve a transformação afirmativa que, assim, passa a se incluir com harmonia na plataforma de Princípios do exercício da Medicina e de Direitos do Médico. Autoridades constituidas punem o médico porque ele deixou de guardar o sigilo profissional, o que é proibido, mas o ensinamento da beira do leito evita a punição, simplesmente, orientando-o a guardar o sigilo profissional, que é o recomendado.
Uma questão me incomoda neste Trajeto do Não, mesmo reconhecendo o valor dos 10 Mandamentos, onde predomina a orientação pelo Não, mas também consciente de que foi assim redigido em função de um cenário com alto potencial transgressor. Por um lado, eu entendo a redação proibitiva para efeitos judicantes, afinal, abusos provocam salvaguardas ao uso e o É vedado ao médico torna-se instrumento para conclusões sobre expedientes com denúncias e processos ético-profissionais que não faltam nos diversos Conselhos Regionais do Brasil. Mas, por outro lado, o fato de 77% do vigor da Ética médica brasileira apresentar-se numa notação “às avessas” quando se procura iluminar o caminho ético, alto percentual destacado como É vedado ao médico, soa-me como paternalismo forte, provoca um quê de autoritário, tende a impedir iniciativas de liberdade regulada e, de certa forma, faz-se inibidor de um auto-treinamento moral frente à pluralidade inevitável da beira do leito. De certa forma, o duplamente negativo atrita com um modo de pensar afinado com a Bioética da Beira do leito, incluindo uma substituição de Não maleficência por Segurança. Razão, inclusive, para que este pensamento que adiciona Filosofia moral à Deontologia dê calor humano à frieza do texto básico para a apreciação dos expedientes sobre suspeitas de infração ética. Evidentemente, há valor moral em socorrer imediatamente uma pessoa que vemos cair na grama, apesar da placa É proibido pisar.
Assim, focando no recém-médico, que necessita desenvolver-se na tecnociência em sua Pós-Graduação em harmonia com a melhor compreensão da tradição da Medicina e consciência dos seus deveres profissionais, parece-me útil fazer as seguintes considerações:
Em primeiro lugar, câmeras fiscalizadoras devem estar internalizadas em cada médico para alertá-lo sobre eventuais desvios dos Princípios fundamentais, não pela proibição deontológica, mas pelo reconhecimento da inconveniência profissional e humana a respeito de como ele deseja pautar o seu exercício profissional.
Em segundo lugar, uma concepção de cabe-me fazer, substituindo a de estou proibido de não fazer, favorece o treinamento na comunicação médico-paciente. Sou capaz de tem mais vigor empreendedor que não devo comportar-me como incapaz de. É assim que nos dirigimos ao paciente: “… cabe-me acolhê-lo…” e não “… estou proibido de não acolhê-lo, e por isso aqui estou conversando, caso contrário fico sujeito a penalidades…”.
Em terceiro lugar, grandes mudanças na Ética por Resoluções do Conselho Federal de Medicina ou por atualizações do Código de Ética Médica- eu estou vivenciando o quarto Código desde a formatura- correspondem a permissões, como é o recente caso da Ortotanásia, que num primeiro momento colidiu com uma visão legal de proibição. Desta forma, estimular o recém-médico a pensar por proibição parece ter mais conotação sobre leis, como acontece com a eutanásia e o aborto, no Brasil.
Em quarto lugar, não acredito que uma proibição explícita, um alerta repressor numa orientação “às avessas”, reduza a chance de um médico deixar de ser prudente, de desrespeitar um valor do paciente, de faltar ao plantão. Muitos dos que reconhecem ter se envolvido com algum tipo de ilícito ético se “auto-advertem” ou se “auto-censuram” pela consciência do contexto afirmativo dos fundamentos da prática da Medicina em solo brasileiro. Enquanto que os “eticopatas” persistem anti-éticos após penalidades, mesmo cientes ipsis litteris da tipificação do que é vedado ao médico.
Em quinto lugar, entendo que o aprendizado pelo afirmativo eleva o sentimento da dignidade profissional e provoca mais “vergonha vacinadora” do descumprimento injustificado e da punição que couber. Creio que ele traz, inclusive, vantagens em prol da motivação para esclarecer o paciente sobre métodos recomendados. Evita uma apreciação de círculo vicioso na pressuposição que o médico não esclarece, é preciso, então, criar vários termos de esclarecimentos para que a assinatura do paciente comprove que houve a informação, e o Código de Ética Médica vigente como que endossa a cogitação, pela redação dupla negativa. É possível que conhecer o Código de Ética Médica como um conjunto de É vedado ao médico e ficar com a impressão de que o julgamento ético centra-se na desobediência a uma proibição e não no descumprimento do dever, possa estar na raiz de comentários negativos de médicos sobre os Conselhos de Medicina. O que de certa forma, obscure a tríade promoção-divulgação-defesa da Ética, contida no Código de Ética Médica.
Em sexto lugar, cada vez mais circunstâncias na beira do leito influenciam ajustes na relação benefício/segurança/autonomia. Ademais, há fatores intervenientes na prática ligados às instituições de saúde e ao sistema de saúde. Colisões com É vedado ao médico deixar de são inevitáveis. Fica, assim, difícil conciliar um taxativo É vedado ao médico com liberações justificadas em função das circunstâncias clínicas e de fatores sobre os quais a pessoa física do médico mostra-se vulnerável. O interpretativo é importante e a Bioética ajuda. Ainda mais, quando há o apoio deste parecer contemporâneo do Superior Tribunal de Justiça: Somente ao médico que acompanha o caso é dado estabelecer qual o tratamento adequado para alcançar a cura ou amenizar os efeitos da enfermidade que acometeu o paciente; a seguradora não está habilitada, tampouco autorizada a limitar as alternativas possíveis para o restabelecimento da saúde do segurado, sob pena de colocar em risco a vida do consumidor http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/19152853/recurso-especial-resp-1053810-sp-2008-0094908-6.
Em sétimo lugar, relembro que o Juramento de Hipócrates é um compromisso de ação, ele não se utiliza de uma reprovação à inação. Jura-se Se eu cumprir este juramento com fidelidade… e não Vejo-me proibido de não cumprir…
O tempo passa rápido. Logo o recém-doutor será o personagem abaixo:
O doutor chegou ao Hospital. Rotina de vários anos. Mesmos horários, mesmos itinerários. Mais trânsito, menos quinze minutos de sono. Alívios nos sábado e nos domingos, mas depende. Saída para férias com um mereço descansar, retorno com um não aguento mais ficar parado.
O doutor vestiu o avental, colocou a caneta e o carimbo no bolso, pegou o elevador e após o cafezinho ritual de iniciação dos trabalhos, chamou o primeiro paciente do dia. Cada consulta representa uma emoção diferente, nunca o doutor conseguiu se sentir um ser indiferente praticando uma mesmice.
Desde a formatura, o doutor impõe a si mesmo a prática da atualidade do correto. O doutor aperfeiçoou o profissionalismo no empenho de procurar soluções adequadas para dilemas e conflitos. O doutor associa o bom passado profissional ao conhecimento orientador do Código de Ética Médica vigente pelo contexto afirmativo e não por um pensamento de É vedado ao médico.
O doutor com o seu número de CRM cada vez mais baixo, em paz com a sua consciência profissional, conciliado com o ontológico e o deontológico numa plataforma essencialmente brasileira, valorizou o Trajeto do Sim!