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43-Seis Personagens à procura de um Doutor

No livro Seis Personagens à procura de um Doutor, o coração consegue escapulir de um tórax aberto no Centro Cirúrgico e vai até o cardiologista para lhe mostrar como eles, os personagens, são de fato e não como os cardiologistas acham que eles são.  Abaixo um capítulo do livro sobre os seis personagens: Aorta, Miocárdio, Pericárdio, Ritmo cardíaco, Coronárias e Válvula.
SeisPersonagens

A  Aorta entrou na conversa: – Doutor, nos ajude com a nossa história!

A Válvula complementou: -Pedimos de todo o coração!

– E porque vocês querem tanto? Insistiu o doutor.

– Porque agora conhecemos melhor a realidade das nossas vidas, respondeu o Ritmo Cardíaco.

-Não é delírio, é um devaneio!  disse o doutor. Eu preciso decifrar este sonho, quem sabe há um ponto de contato com algum acontecimento recente.

O doutor  vasculhou a mente e nada encontrou. – Este  Freud não explica, resignou-se o doutor.

-Doutor, disse o Miocárdio, nós viemos representando nossa comunidade que deseja se livrar da triste condição de líder de obituário.

– Entendemos   que a nossa presença aqui possa transmitir ao doutor uma visão adicional das nossas personalidades, falou o Ritmo Cardíaco.

–  A nossa pretensão é  que o conhecimento de  novos ângulos da nosso dia-a-dia  possa favorecer uma melhora da nossa posição no ranking das causa-vitae, finalizou o Miocárdio.

O Ritmo Cardíaco olhou para o Miocárdio.  Os dois haviam dado o recado e agora suas faces eram uma plástica de esperança e receio de se frustarem.

– E porque eu? Perguntou o doutor.

– Em primeiro lugar, disse o Ritmo Cardíaco, porque o senhor é um doutor especialista e portanto competente para participar de nossos assuntos íntimos.

Temos necessidade de  nos abrir com alguém de confiança, disse o Miocárdio, que não vá ficar fofocando  sobre nossas confidências: sabe o  Miocárdio… o Miocárdio, você conhece… você nem imagina  o  que aconteceu com o coitado…

Há pouco tempo, tive uma  experiência desagradável neste sentido, disse a  Aorta. Eu estava na sala de espera do meu dentista, quando  pintou uma  conversa com  a Língua que acompanhava a Gengiva, aliás muito simpáticas as duas. Conversa vai, conversa vem, comentei alguns fatos da minha vida.

– E a língua acabou dando nos dentes, disse o doutor.

-Foi isso mesmo, falou agora o Ritmo Cardíaco. Uma semana depois, a nossa assessoria de imprensa nos encaminhou o xerox de uma  entrevista da Boca, comentando sobre o que eu a Aorta dissera pra Língua.

– A boca que elogia é a mesma que ofende, gritou o  Pericárdio.

– Em segundo lugar, disse o   Miocárdio, fizemos uma pesquisa e o senhor foi o escolhido.

E o Ritmo Cardíaco completou: -Foram  várias  horas de análise de muitos currículos; seguimos  os critérios que encontramos num site sobre Qualidade e Mérito.

-E quais  foram ? Perguntou o doutor.

-Dos que eu me lembro, foram a formação acadêmica, pós-graduação, atualização, bom senso, didática, redação, educação e valorização do humanismo, detalhou o Miocárdio.

– Mas antes nós fizemos  uma triagem, disse o Ritmo Cardíaco.

– Que tipo de triagem? Perguntou o doutor.

-Nós incluimos os doutores que vivem pensando em nossa harmonia e excluimos os que só querem nos usar em benefício próprio, concluiu o Ritmo Cardíaco.

– Eliminamos os que se apresentam como nossos conhecidos depois de ler umas poucas linhas sobre nós, disse o Miocárdio. E arrematou:- Não somos coração de papel.

Os seis personagens fecharam uma roda em torno do doutor. Quem os visse de cima perceberia que estavam dispostos com o formato de um coração.

– Acho que literalmente estou com o coração na mão, disse o doutor.

A Válvula falou: – Entendemos como o senhor deve estar estranhando tudo isso, é natural; afinal, somos nós que estamos procurando o doutor,  quando o senhor está acostumado a ir atrás de nós.

A um comando de olhar do Ritmo Cardíaco, os seis personagens disseram em uníssono de voz e expectativa:  – Doutor, diga sim! O senhor jurou cuidar de nós.

– O Pericárdio gritou: Hipócrates sim, hipócrita não! Pensando bem, é um privilégio, respondeu o doutor; mas imediatamente o anjinho mau entrou em ação: – Um aborrecimento talvez.

– O que? Perguntou o Miocárdio.

– Nada, respondeu o doutor, tentando disfarçar o conflito.

– Doutor, por mais paradoxal que pareça, esta é uma situação palpável, disse a Aorta.

– Até agora, disse o doutor, vocês eram evocações inanimadas e de repente, se transformam em  figuras  personificadas que me pedem  ajuda e propõem parceria.

E prosseguiu: – Quando eu era criança, me lembro que era divertido construir  imagens livres com o que lia nos livros; eu gostava também de imaginar como seria a cara do locutor de cada voz que ouvia no rádio. Enfim, funcionavam como estimulantes da minha curiosidade infantil, a oportunidade que tinha para viver no mundo da fantasia criativa.

– Pelo jeito, o senhor sempre gostou de fazer diagnóstico, falou a Válvula.

– E quando chegou a televisão, prosseguiu o doutor, a imagem real me encantou.

– Mas atualmente, disse a Válvula, a televisão presta um desserviço para a criatividade da criançada.

O doutor concordou fazendo um gesto afirmativo com a cabeça.

Era o momento propício para uma bebida forte, mas o doutor não bebia nada alcoólico; ele virou-se para o Miocárdio  que não parava de contrair os músculos e disse: – Vocês têm que dar um tempo, porque  é tudo muito irreal para mim.

– Não dá, doutor. respondeu o Miocárdio que alternava uma postura de tensão e de relaxamento; acontece que estamos acostumados a responder imediatamente a qualquer nova situação e esperamos que os outros assim também façam.

– A visão que sempre tive de  vocês, continuou o doutor, é um misto da  realidade da anatomia e da virtualidade das imagens.

– O senhor pode nos explicar melhor? disse a Válvula.

-Vou lhes dar um exemplo, disse o doutor:  toda vez que me refiro a  você, Válvula- apontando para ela- vem à mente  as peças normais, as excisões cirúrgicas, as identificações ecocardiográficas.

– Se não estou enganado,  interrompeu a Aorta,  ela se  torna uma representação de memória.

-Exatamente isso! e que aciona  várias informações interligadas, completou o doutor.

O Ritmo Cardíaco ousou falar:- É um processo de transmissão instantânea, sei como isso funciona desde que me conheço por gente.

– E  de vez em quando não dá um nó cerebral? Você quer ligar uma coisa com outra e não consegue, perguntou o doutor.

– Doutor, nó é que não falta no caminho do Ritmo Cardíaco, adiantou-se a Válvula.

-Doutor, é que ela tem inveja do meu potencial de ação! Falou o Ritmo Cardíaco.

– Ritmo Cardíaco, vá fazer onda pros teus amiguinhos- disse a Válvula.

– Que amiguinhos? perguntou o Ritmo Cardíaco.

–  Os voyeurs  de monitor, devolveu a Válvula.

O doutor estava começando a gostar.

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