A Aorta entrou na conversa: – Doutor, nos ajude com a nossa história!
A Válvula complementou: -Pedimos de todo o coração!
– E porque vocês querem tanto? Insistiu o doutor.
– Porque agora conhecemos melhor a realidade das nossas vidas, respondeu o Ritmo Cardíaco.
-Não é delírio, é um devaneio! disse o doutor. Eu preciso decifrar este sonho, quem sabe há um ponto de contato com algum acontecimento recente.
O doutor vasculhou a mente e nada encontrou. – Este Freud não explica, resignou-se o doutor.
-Doutor, disse o Miocárdio, nós viemos representando nossa comunidade que deseja se livrar da triste condição de líder de obituário.
– Entendemos que a nossa presença aqui possa transmitir ao doutor uma visão adicional das nossas personalidades, falou o Ritmo Cardíaco.
– A nossa pretensão é que o conhecimento de novos ângulos da nosso dia-a-dia possa favorecer uma melhora da nossa posição no ranking das causa-vitae, finalizou o Miocárdio.
O Ritmo Cardíaco olhou para o Miocárdio. Os dois haviam dado o recado e agora suas faces eram uma plástica de esperança e receio de se frustarem.
– E porque eu? Perguntou o doutor.
– Em primeiro lugar, disse o Ritmo Cardíaco, porque o senhor é um doutor especialista e portanto competente para participar de nossos assuntos íntimos.
Temos necessidade de nos abrir com alguém de confiança, disse o Miocárdio, que não vá ficar fofocando sobre nossas confidências: sabe o Miocárdio… o Miocárdio, você conhece… você nem imagina o que aconteceu com o coitado…
Há pouco tempo, tive uma experiência desagradável neste sentido, disse a Aorta. Eu estava na sala de espera do meu dentista, quando pintou uma conversa com a Língua que acompanhava a Gengiva, aliás muito simpáticas as duas. Conversa vai, conversa vem, comentei alguns fatos da minha vida.
– E a língua acabou dando nos dentes, disse o doutor.
-Foi isso mesmo, falou agora o Ritmo Cardíaco. Uma semana depois, a nossa assessoria de imprensa nos encaminhou o xerox de uma entrevista da Boca, comentando sobre o que eu a Aorta dissera pra Língua.
– A boca que elogia é a mesma que ofende, gritou o Pericárdio.
– Em segundo lugar, disse o Miocárdio, fizemos uma pesquisa e o senhor foi o escolhido.
E o Ritmo Cardíaco completou: -Foram várias horas de análise de muitos currículos; seguimos os critérios que encontramos num site sobre Qualidade e Mérito.
-E quais foram ? Perguntou o doutor.
-Dos que eu me lembro, foram a formação acadêmica, pós-graduação, atualização, bom senso, didática, redação, educação e valorização do humanismo, detalhou o Miocárdio.
– Mas antes nós fizemos uma triagem, disse o Ritmo Cardíaco.
– Que tipo de triagem? Perguntou o doutor.
-Nós incluimos os doutores que vivem pensando em nossa harmonia e excluimos os que só querem nos usar em benefício próprio, concluiu o Ritmo Cardíaco.
– Eliminamos os que se apresentam como nossos conhecidos depois de ler umas poucas linhas sobre nós, disse o Miocárdio. E arrematou:- Não somos coração de papel.
Os seis personagens fecharam uma roda em torno do doutor. Quem os visse de cima perceberia que estavam dispostos com o formato de um coração.
– Acho que literalmente estou com o coração na mão, disse o doutor.
A Válvula falou: – Entendemos como o senhor deve estar estranhando tudo isso, é natural; afinal, somos nós que estamos procurando o doutor, quando o senhor está acostumado a ir atrás de nós.
A um comando de olhar do Ritmo Cardíaco, os seis personagens disseram em uníssono de voz e expectativa: – Doutor, diga sim! O senhor jurou cuidar de nós.
– O Pericárdio gritou: Hipócrates sim, hipócrita não! Pensando bem, é um privilégio, respondeu o doutor; mas imediatamente o anjinho mau entrou em ação: – Um aborrecimento talvez.
– O que? Perguntou o Miocárdio.
– Nada, respondeu o doutor, tentando disfarçar o conflito.
– Doutor, por mais paradoxal que pareça, esta é uma situação palpável, disse a Aorta.
– Até agora, disse o doutor, vocês eram evocações inanimadas e de repente, se transformam em figuras personificadas que me pedem ajuda e propõem parceria.
E prosseguiu: – Quando eu era criança, me lembro que era divertido construir imagens livres com o que lia nos livros; eu gostava também de imaginar como seria a cara do locutor de cada voz que ouvia no rádio. Enfim, funcionavam como estimulantes da minha curiosidade infantil, a oportunidade que tinha para viver no mundo da fantasia criativa.
– Pelo jeito, o senhor sempre gostou de fazer diagnóstico, falou a Válvula.
– E quando chegou a televisão, prosseguiu o doutor, a imagem real me encantou.
– Mas atualmente, disse a Válvula, a televisão presta um desserviço para a criatividade da criançada.
O doutor concordou fazendo um gesto afirmativo com a cabeça.
Era o momento propício para uma bebida forte, mas o doutor não bebia nada alcoólico; ele virou-se para o Miocárdio que não parava de contrair os músculos e disse: – Vocês têm que dar um tempo, porque é tudo muito irreal para mim.
– Não dá, doutor. respondeu o Miocárdio que alternava uma postura de tensão e de relaxamento; acontece que estamos acostumados a responder imediatamente a qualquer nova situação e esperamos que os outros assim também façam.
– A visão que sempre tive de vocês, continuou o doutor, é um misto da realidade da anatomia e da virtualidade das imagens.
– O senhor pode nos explicar melhor? disse a Válvula.
-Vou lhes dar um exemplo, disse o doutor: toda vez que me refiro a você, Válvula- apontando para ela- vem à mente as peças normais, as excisões cirúrgicas, as identificações ecocardiográficas.
– Se não estou enganado, interrompeu a Aorta, ela se torna uma representação de memória.
-Exatamente isso! e que aciona várias informações interligadas, completou o doutor.
O Ritmo Cardíaco ousou falar:- É um processo de transmissão instantânea, sei como isso funciona desde que me conheço por gente.
– E de vez em quando não dá um nó cerebral? Você quer ligar uma coisa com outra e não consegue, perguntou o doutor.
– Doutor, nó é que não falta no caminho do Ritmo Cardíaco, adiantou-se a Válvula.
-Doutor, é que ela tem inveja do meu potencial de ação! Falou o Ritmo Cardíaco.
– Ritmo Cardíaco, vá fazer onda pros teus amiguinhos- disse a Válvula.
– Que amiguinhos? perguntou o Ritmo Cardíaco.
– Os voyeurs de monitor, devolveu a Válvula.
O doutor estava começando a gostar.