Quando o paciente adulto perde a capacidade de fazer escolhas sobre recomendação médica – em geral por um aspecto neurológico-, a Ética introduz um terceiro na relação médico-paciente, que é nomeado como representante indicado.
A denominação sugere que a pessoa que fará as vezes do agora legalmente incapaz paciente para emitir consentimentos ou recusas e propor ajustes gozava da confiança do paciente quando estava capaz. Subentende-se, pois, que o substituto conheça razoavelmente o substituído a respeito de seus desejos, preferências e valores. Todavia, nem tudo é previsível em se tratando de questões de saúde e o leigo desconhece a natureza de uma série de procedimentos que poderá vir a necessitar, assim, dificultando detalhamentos. Orientações gerais trazem dificuldades de decisão.
A prática mostra níveis distintos de proximidade do paciente ao representante indicado. Há os extremos do cônjuge de 50 anos de convivência e do vizinho que trouxe o paciente ainda capaz ao hospital, cuja legitimidade de representação é questionável. Há a relação médico-paciente fortalecida pelo decorrer dos anos, agora em presença de uma demência do paciente e há a formada na circunstância de um coma recente, o qual, inclusive, nem deveria ser denominada como relação médico-paciente, pela exiguidade de tempo de convivência com o estado capaz do paciente.
Poderíamos então dizer que, uma vez que o paciente apresente-se legalmente incapaz durante uma internação hospitalar, desenvolvem-se duas modalidades de relação: a médico-doença do paciente e a médico-representante indicado.
O médico recolhe do corpo do paciente as informações necessárias, as transforma em recomendações de utilidade, de eficácia, de segurança e sobre prognóstico e promove o arremate do processo de tomada de decisão com o representante indicado. Tudo em conformidade com o texto de artigos do Código de Ética Médica vigente.
Há uma questão relevante, contudo: Qual o grau de concordância da palavra do representante indicado em suas versões mais ou menos íntimas à da que seria proferida pelo paciente?
A incapacidade do paciente torna evidentemente impossível testar o nível de superposição ao declarado pelo representante indicado. Assim, o valor de porta-voz perde objetividade de análise caso a caso. O médico interage com o representante indicado, registra o diálogo e deve cumprir a determinação resultante, pois lhe é vedado deixar de respeitar o representante indicado. Apreciações do médico sobre a qualidade da substituição podem gerar dilemas e sensação de negligência.
O representante indicado é um terceiro que oscila numa gama de comportamentos, desde a simples obediência à recomendação do médico até a de propostas que provocam o médico utilizar-se da sua autonomia para não praticar o que fere a Ética e a sua consciência.
A Bioética da Beira do leito coleciona algumas apreciações sobre o tema que demandam reflexões cuidadosas:
1- Há situações onde o médico foi mais confidente do paciente ao longo de anos de vínculo profissional do se mostra o representante indicado. O médico fica com a percepção que eventuais discordâncias do representante indicado a suas recomendações não trazem real respeito às atitudes que o paciente tomaria em plena capacidade. Fica o dilema entre o frio texto do Código que não fornece critérios de qualificação da representação e o sigiloso conhecimento do médico, nem sempre devidamente anotado em prontuário. Recorde-se que a Diretiva Antecipada de Vontade, o chamado Testamento Vital, documento que poderia sanar dúvidas, é ainda raro no Brasil -para quem quiser saber mais, o livro Testamento Vital do advogado Ernesto Lippmann é leitura fundamental.
2- A propriedade de reprodução da palavra do representante indicado tem implicações distintas na dependência da questão a ser decidida. Obviamente, a do aprofundamento de uma investigação de co-morbidade é distinta da do direcionamento para cuidados paliativos. Níveis de esclarecimento sobre o que está sendo decidido e período do tempo para dar a resposta podem diferir do que seria do próprio paciente. Lembranças sobre a pessoa do paciente de utilidade para a representação podem ficar num plano secundário de comando em relação ao poder da afetividade e à preocupação pela responsabilidade da decisão, especialmente em circunstâncias de alto risco e de baixo benefício.
Desejos do representante indicado podem comprometer a sua neutralidade em relação à fidelidade a um passado de conjecturas do paciente sobre o futuro- “… se acontecer isso, eu desejo que faça ou não faça…”. O Testamento Vital, funcionando como um representante com indiscutida autenticidade, contribui para evitar “traições de boa-fé” voluntárias ou involuntárias que distorcem o sentido do válido, lembrando que ele é renovável e revogável, portanto, a ser permanentemente retroalimentado à medida que os fatos da vida vão impactando em desejos, preferências e valores.
3- Idealmente, o médico deveria estimular o paciente a se preparar para uma incapacidade legal de tomar decisões sobre a própria saúde. O médico pode assessorá-lo a “treinar” uma pessoa ou elaborar um Testamento Vital. Não obstante, não há um clima cultural favorável esta iniciativa no Brasil. Seria motivo, inclusive, para desconfianças do tipo “ … que eu tenho que o médico sabe e não quer me dizer?…”. Todavia, a questão parece ir além da comunicação antecipada. Há estudos que evidenciam que ela nem sempre eleva a acurácia da substituição, o que em parte reforça considerações do ítem prévio.
4- Um título de livro tornou-se uma expressão linguística usada com certa frequência: A escolha de Sofia. O autor, o estadunidense William Clark Styron Jr (1925-2006), relata o presente da personagem polonesa Sophie Zawistowska que, sobrevivente do campo de concentração em Auschwitz, mora em Nova Iorque, atormentada pela escolha que fora obrigada a fazer. Instada a decidir sobre qual dos filhos, Jen ou Eva seria poupado, decide pelo menino e, como seria de se esperar do crime hediondo, foi apenas uma definição de timing para a perda, pois ela nunca mais teve notícia dele.
O representante indicado pode ter um tormento pela escolha. Estudos evidenciaram que ter que tomar decisão importante em nome do paciente provoca um forte sentimento negativo no representante indicado, dano emocional e incertezas sobre a capacidade para realizar a tarefa.
5- A prática mostra que a figura individual do representante indicado é, frequentemente, substituída pelo coletivo familiar. Acontece que a homogeneidade que daria maior consistência à representação nem sempre acontece e o médico fica no “fogo cruzado” entre opiniões divergentes.
Um porta-voz familiar que possa trazer uma decisão entre as controvérsias é desejável. Ademais, o nome do representante indicado pelo paciente pode não ser o do familiar que entende ter a prerrogativa da substituição, motivo de conflitos que respingam no médico quando do cumprimento do texto deontológico.
6- Estamos na era cibernética. O leitor está diante de um computador e ao lado de uma aparelho celular, ou mesmo eles são um só. Já existe a perspectiva do desenvolvimento de algoritmos que permitiriam orientar sobre o “que o paciente teria respondido se capaz estivesse”.
Acessa-se uma máquina alimentada com uma série de dados, incluindo demografia, antecedentes, escolhas conhecidas, estado socioeconômico, prognóstico da doença e outras tantas variáveis acumuladas da vida do paciente e chega-se à palavra da máquina indicada, eliminada de culpas e de subjetividades… e do calor humano… Algo como revelar a própria senha. Senha da vida!
Há informações que protótipos provocaram 84% de correspondência em testes entre a “máquina indicada” e o próprio paciente. Eclode a pergunta: Passaria o cumprimento a uma exigência por autonomia do ser humano vulnerável -flexibilidade em resposta a circunstâncias- a ser executado por uma modalidade de paternalismo cibernético poderoso- inflexibilidade? Um Testamento Vital substituído por um on-line continuado Testemunho Vital?
Nas palavras de um amigo: “Convivo tanto com o meu computador e com o meu celular que não há “ninguém” que me conheça tão bem”.