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108-O lápis, a borracha e a Bioética

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Salix alba

yellow-wooden-pencil-no-name-1024x571Um reverendo inglês entendia que Deus coloca um remédio perto de cada doença. O nome dele era Edward Stone (1702-1768).

Disposto a comprovar a sua teoria ele embrenhou-se num pântano perto de Chipping Norton, onde havia a Febre dos pântanos. Stone logo percebeu que havia muitos salgueiros, a Salix alba, no local.

Experimentou o gosto amargo da casca da árvore e intuiu que o “sabor quinino” reforçava a sua hipótese teológica. Animado, Stone retornou a Londres, analisou as amostras da casca, desenvolveu um sal, testou em cerca de 50 pessoas que sofriam de reumatismo e diante da melhora da inflamação comprovou a sua tese: há uma Farmácia na Natureza. O reverendo Stone isolara de uma árvore o princípio ativo conhecido como ácido acetil salicílico (AAS).

O fato aconteceu há mais de três séculos, cerca de 2 mil anos após Hipócrates – que recomendava a gestantes mascar a folha do salgueiro para amenizar as dores do parto.

AAS ganhou universalidade. Tornou-se medicamento multi-benefício, inclusive auto-medicação. O tempo ensinou também que comprimidos de AAS provocam danos na passagem pelo estômago. Aprendeu-se que é preciso prevenir a incômoda gastrite medicamentosa. Soluções incluem tomar um tipo farmacêutico de AAS que passa direto pelo estômago, evitar uso em jejum ou associar a medicamento gastroprotetor. Ademais, verificou-se que o uso de AAS requer atenção a possibilidades hemorrágicas plaqueta-dependentes espontâneas ou associadas a traumatismos e dificuldades de coagulação intra e pós-operatórias. A anamnese pré-operatória incorporou a obrigatoriedade de conhecimento do uso de AAS.  Assim caminha o conhecimento baseado na vivência da beira do leito, evidência da inteligência e da compaixão do ser humano na função de cuidador da saúde.

A lição é clara para o médico prescritor. Uma coisa é o medicamento na caixa, uma esperança de benefício. Outra coisa é ele transitando pelo corpo em busca dos receptores interativos. Mais uma coisa é a confirmação do efeito terapêutico desejado. E, mais ainda, é o efeito indesejado pela atuação não seletiva.

A casca do salgueiro foi há muito substituída pela biotecnologia ligada à industrialização dos fármacos. O direcionamento da matéria-prima “natural” para uma complexa criação de novas moléculas expandiu a potencialidade farmacêutica e desaguou numa dinâmica de pesquisa com pluralidade de etapas: a concepção da inovação, o teste da segurança, o teste do benefício, a análise da eficácia em comparação com o já existente, a observação das adversidades, a validação e a liberação para uso, a difusão do conhecimento associado – mecanismo de ação, indicações ao longo da história natural da doença, doses minimamente efetivas e máximas toleradas-, a atenção à fase de mercado quando o mundo real das combinações de morbidades e das reações individuais coloca as exclusões intencionais de aspectos demográficos e clínicos da pesquisa no caminho da interação risco/benefício entre a química do comprimido e a biologia de quem o toma.

A ideia da “tradução” do Laboratório  para a beira do leito assistencial ganhou entre nós o termo Translacional, um neologismo, um anglicismo a partir de Translation Research.

A Bioética da Beira do leito interessa-se pelo Translacional da beira do leito. Quer para aspectos teóricos, quer para aspectos de intervenção. Ele inclui, neste caso dos fármacos, a atenção às semelhanças e às dessemelhanças com os originais da validação baseada nas pesquisas clínicas. O que significa uma expansão das informações conclusivas dos estudos sistematizados  que sustentaram o licenciamento governamental para a prescrição rotineira.

A Bioética da Beira do leito incentiva o uso do lápis-borracha para ajustes dos desenhos difundidos pela literatura às peculiaridades dos encontros das evidências científicas – auto-limitadas no Laboratório- com as evidências  clínicas – com infinito potencial de complementos na beira do leito. É da prática médica beneficente/não maleficente fazer adaptações dentro de limites entendidos como confiáveis, como em doses da prescrição e no timing da administração.

A Bioética da Beira do leito reconhece que o voluntário de pesquisa exposto ao ainda não provado é tão-somente um modelo imperfeito do paciente que usará o já provado,  que ele foi configurado de acordo com a necessidade de se obter respostas com fundamentação científica e poder estatístico. Ele constitui uma amostra que subentende margens de erro para a utilidade e a eficácia da droga uma vez licenciada. O que estimula lápis-borracha individualizadores. Sempre haverá a conveniência do traço a mais, do traço a menos, caso a caso.

A globalização reforça as experiências pessoais, sustenta atualização periódica, relevante fase epistêmica ulterior à pesquisa formal que acresce sabedoria ao saber. Numa linguagem moderna, provê configuração mais amigável às custas de exaustivas observações e metaanálises. Não é incomum uma reconfiguração offlabel no desenvolvimento translacional e até mesmo uma surpresa de indicação  de uso de fármaco na fronteira  translacional. O efeito colateral passa de adversidade para utilidade, como aconteceu com o minoxidil e a sildenafila.

Em outras palavras, a informação translacional não é estática, especialmente nos primórdios do lançamento da inovação para uso assistencial, ela tem uma trajetória de assimilação pró-eficiência e pró-segurança sinalizada pelo olhar clínico inquieto, integrativo  ao que se conhece, ao mesmo tempo experiente na assistência e respeitoso do teor da pesquisa e dos fundamentos da Medicina.

A Bioética da Beira do leito colabora para que o manejo das imprevisibilidades do translacional ocorra com o menos possível dano para o paciente e custo ao sistema de saúde. O olhar para a chamada curva de aprendizado da inovação necessita de lentes de prudência e de zelo. O vilão da adversidade translacional provoca frustações da esperança, sofrimentos adicionais e dispêndios financeiros, especialmente por internações hospitalares inesperadas ou prolongamentos do tempo da mesma.

Por fim, a Bioética da Beira do leito comunga com opiniões que valorizam os estudos ditos negativos, os que concluem pela inferioridade em relação ao já existente. Eles trazem informações úteis para repensar as bases, as observações que deram sinal verde para a fase subsequente “mal sucedida”, e assim, aprender sobre correções  que evitem repetições de ilusões pré-clínicas. Equívocos que acontecem quando se procura uma solução são lições altamente instrutivas, razão pela qual um insucesso é, muitas vezes, mais eficiente para redirecionar conceitos e perspectivas de futuro do que muitos sucessos que pouco benefício trazem ao mundo real.

O reverendo Edward Stone previu remédio no gosto amargo da casca da Salix alba. A Bioética da Beira do leito alerta, por sua vez, que “gostos amargos” precisam ser considerados no uso de fármacos. A possibilidade de ocorrência precisa ser do conhecimento do paciente a fim de fundamentar o seu consentimento livre. É terreno pantanoso que exige a prudência do médico, a virtude da fidelidade ao futuro da qualidade de vida do paciente.

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