Final de ano após final de ano, sextanistas festejam-se médicos declamando o Juramento de Hipócrates. Professores honrados, familiares emocionados e amigos orgulhosos testemunham jovens idealistas, virtualidade de mãos sobre a Bíblia, virtude na fidelidade à verdade da beira do leito, expressarem a tradicional maneira simbólica de compromisso com as boas práticas.
Palco e platéia incorporam o juramento a sua maneira. Muito breve, o recém-formado estará plenamente convencido do sentido metafórico da promessa evocada aos divinos Asclépio, Higeia e Panaceia. Asclépio deve ser entendido como a habilidade para aplicar o acervo da Medicina, Higeia refere-se à saúde pública e bem-estar social e Panaceia é remédio em sentido geral. Não faltarão fascínios e cantos de sereia para desafiar a memória às promessas solenes.
A cobrança do “estado permanente de juramento” tem fatura original emitida numa pequena ilha grega chamada Kós com cerca de 300 Km2 de superfície e pouco mais de 110 Km de costa no mar Egeu. O impacto dela emanado resultou consistente com o significado do nome do ilhéu famoso: força (kratos) de um cavalo (hippos).
O hipocrático santuário de Asclépio foi locus criativo de inícios sem fim. No desenvolver da infinitude, cada um de nós pertence à prole do Pai da Medicina. Somos súditos herdeiros universais, as centenas de milhares de estrangeiros pelo nascimento, em relação à Kós, tornam-se naturalizados compatriotas na formatura jurada.
Hipócrates clareou horizontes quando afastou as nuvens negras da superstição e dos espíritos diabólicos. Uma vez dissipadas, ele obteve a iluminação para enxergar a unicidade do corpo humano, a clareza de um todo e a não a penumbra de partes juntas.
As radiações do intelecto de Hipócrates trouxeram matizes éticos ao nosso simbólico branco. Ele próprio era uma ilha de vibrante colorido sob o açoite de ondas cerebrais de observações e abstrações, ires-e-vires de avanços e recuos, rebentações de ideias, marés de sentimentos e de ponderações.
O renome surgiu fértil pela coragem criativa e perdurou profícuo pela prática. Do pétreo solo da terra natal, Hipócrates absorveu a longevidade, quiça a eternidade e sua obra adquiriu resistência às intempéries, as naturais e as humanas.
Das escarpas da ilha em briga sem-fim com o oceano, Hipócrates apreendeu a disposição para enfrentar impetuosidades que violentam. Da erosão da ilha, subtração lenta e imperceptível do conteúdo para o fundo mar, intuiu a pedagogia da natureza sobre a escuridão das profundezas como destino de aparente solidez de exposições.
Hipócrates precedeu muitos séculos a Lavoisier (Antonie Laurent, 1743-1794), mas comportou-se na premissa que novas formas são modificações das existentes. Ele não criou a infinitude do bastão de Esculápio e não comprometeu o seu simbolismo. Ele transformou a influência, dissociou-o do desejo dos deuses e associou-o à exigências do homem.
A relação do médico tinha que ser humana com seres humanos e, essencial, exigia o sigilo. Um dos mais notáveis ensinamentos de Hipócrates foi que “desnudar” o examinado como doente não deveria ser revelação da sua intimidade como pessoa.
Desta forma, Hipócrates em “… Conservarei inteiramente secreto o que eu tiver visto ou ouvido no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio com a sociedade e que não seja preciso divulgar…” firmou nexo ético para o contexto das necessárias contraposições da figura do médico: observador “cego”, ouvinte “surdo” e falante “mudo”.
A ilha de Kós fica na água onde Egeu pulou aflito, a beira do leito convive com a liquidez ética onde Hipócrates mergulhou convicto. As renovações do conteúdo salgado sustentam-se na doce grandeza da Ética. Nível do oceano e Medicina de nível subsistem pelas recomposições em sintonia com os fundamentos da concepção. Três destes, tratar o paciente com a máxima capacidade, preservar o sigilo e ensinar geração após geração impõem constantes adaptações do ser médico ao evoluir de circunstâncias sociais, assistenciais e de pesquisa.
Jurar sobre o texto de Hipócrates é tradição inegociável, perjurar é traição indesejável.
Em tempos de alto destaque para a tecnologia, da necessidade da conciliação entre técnica, ciência e humanismo, de discussões sobre políticas de inserção social da Medicina, o Juramento de Hipócrates corporifica valores, chama a atenção para o compromisso moral e destaca a relação tríplice do médico: com a Humanidade, com o paciente e com a classe profissional.
Desta forma, o Juramento de Hipócrates traz a noção do dever de uma pessoa para com outra e de todos com a Humanidade, que é a definição da Bioética que nasceu da preocupação com os efeitos do progresso tecnológico sobre a vida, a saúde e o ambiente.
Hipócrates vivenciou o niilismo terapêutico, a Bioética vivencia a diversidade terapêutica. Na junção, o fortalecimento recíproco, a lição que a relação médico-paciente/familiar- instituição de saúde –sistema de saúde é sempre de natureza humana, plural, crítica e interdisciplinar e que deve ser reavaliada a cada novo movimento diagnóstico, terapêutico ou de prevenção.