Recentemente, assisti a uma Formatura de Medicina. Quanta alegria! Apitos, gritos, acenos, faixas. Nenhum formalismo dos parentes e dos amigos. Modernidade! O oposto do silêncio da cerimónia do teatro Municipal do Rio de Janeiro quando recebi o canudo simbólico- o diploma vem depois.
Em contraste, houve o momento da máxima formalidade da tradição: jovens jurando palavras escritas há 25 séculos. Por Apolo, por Esculápio, por Higeia e por Panacea…
Fiquei pensando como a figura de Hipócrates (460ac-370ac) não se afina muito bem com manifestações ruidosas. Ele deu estilo à Medicina. Reservado, sem dúvida. Desfraldou a bandeira tremulante da ética. Ops! Cada vez mais me surpreendo com a língua portuguesa. Quis dizer em movimento e percebi que no adjetivo cabe também o significado de hesitante. E como cabe nos dias de hoje!
Na semana seguinte, descobri que houve na História da Medicina um movimento que foi denominado de Neo Hipocratismo. Interessei-me. Fui atrás. Verifiquei que quando a Medicina afastava-se do seu simbolismo, alguma “doutrina hipocrática” ressurgia. Reforcei que Bioética identifica-se com pensamentos de Hipócrates.
Selecionei alguns tópicos para o bioamigo. Eles dão ideia da solidez da plataforma Hipócrates que fundamenta as boas práticas atuais da Medicina na beira do leito.
1. Hipócrates entendia que o organismo vivo tende a remover os fatores que ameaçam a vida e que o ser humano tem um propósito pró-vida, ele procria e ele supera obstáculos. O seu ponto de vista é oposto à visão mecanicista, segundo a qual a vida resulta de ações externas que provocam vários estímulos.
Assim, Hipócrates deu ensejo à concepção dinâmica da doença que apresentou flutuações de aplicação com a mecanicista na História da Medicina.
O pensamento científico cuidou de desconstruir a base mecanicista eminentemente física e química e reforçou que o paciente luta contra a doença, que órgãos exibem mecanismos de compensação a deficiências, que a inflamação tem propósito pró-manutenção da vida e que a imunologia selou o “poder curativo da natureza”.
2. Hipócrates percebeu que o organismo do homem difere um do outro. Quando a Bacteriologia surgiu no decorrer do século XIX provocou o deslocamento da concepção da doença para a causalidade bacteriana que passou a dominar a classificação das doenças. Novamente, o espírito hipocrático da combinação de fatores fez o chamado Causalismo perder força e ser substituído pela noção que cada pessoa reage diferentemente a causas externas e assim adoece ao seu modo- Princípio Constitucional. Retornava-se, pois, a Hipócrates e ao valor da constituição individual no desenvolvimento das morbidades.
3. O Princípio da Unidade do organismo foi formulado com mais precisão na década de 20 do século passado. Desaparecia o conceito que o corpo era um feixe de órgãos mais ou menos interconectados e consolidava-se a noção que o ser humano é uma unidade, a vida de cada um dependente da vida do conjunto. Organismo passou a ser a palavra de ordem, a unidade deveria se vista como primária.
4. O conceito de doença passou por algumas modificações. Surgiu entendendo-se que doentes tinham combinação de morbidades que se repete. A classificação das doenças era, então, chamada nosográfica e referia os sintomas à doença e não ao paciente. Mais tarde, doença deixou de ser simplesmente um conjunto de sintomas e sinais que se apresentavam com certa regularidade de combinação e se tornou sintomas e sinais de lesão em órgão específico, dentro de um conceito anátomo-clínico e de disfunção. Subsequentemente, a noção de etiologia que adquiriu relevância pelo desenvolvimento da Bacteriologia fez a doença ser classificada pela etiologia mais do que por sintomas, anatomopatologia ou disfunção de órgãos. Desta maneira, o conceito de doença passou por várias da concepções na mente do médico.
5. O retorno à Hipócrates aconteceu com a ênfase nos aspectos biológicos sustentada pelo Princípio Constitucional que admitia o valor da disposição individual e de uma visão integrativa com participação fundamental dos sistemas endócrino e nervoso como reguladores da constituição do organismo, da composição psicofísica e do biótipo.
6. Os conceitos trouxeram impacto na atitude terapêutica. A hieraquia do Princípio Constitucional reduziu as tendências nihilistas e agressivas, consolidando que a eficácia comprovada em fortalecer a constituição do organismo era fundamental para a justificativa da cogitação de tratamento.
7. O Princípio do Nihilismo entendia que a Natureza deveria seguir o seu curso, de acordo com a escola vienense do século XIX, segundo a qual a Natureza era o grande doutor e que não existia o bom ou o mau médico, mas o médico com sorte e o sem sorte. Em outras palavras, oferecia-se bom diagnóstico e melhor necropsia. Por mais absurdo que soe este Princípio, havia uma razão que não era desprezível: a toxicidade das drogas existentes que mais mal faziam. Ficou célebre a ironia de Oliver Wendell Holmes (1809-1894): “… Jogar as drogas todas no oceano será benefício para a Humanidade e malefício para os peixes…”
8. A agressividade corria por conta da desvalorização da reação constitucional do paciente e, assim, punha foco na aplicação do contrário à doença. Incluía sangrias e sais tóxicos sem nenhuma cautela com doses.
9. O pensamento segundo o Princípio Constitucional revelou-se útil e logo subsidiou progressos na Terapêutica longe de dogmatismos.
10. A Psicoterapia reforçou o valor do sistema psico-neuro-endócrino como base do Princípio Constitucional e do conceito holístico sobre doenças. Este cresceu com as evidências que a lesão localizada em um órgão é precedida por modificações químicas generalizadas e do binômio corpo-mente. Travou-se uma batalha contra a “ditadura” de Virchow (Rudolf Ludwig Karl-1821-1902) que insistia que a doença nunca era geral, mas sempre localizada em tecidos ou em órgãos.
11. A noção da influência de hábitos, especialmente a respeito da alimentação, tem raizes no Princípio Constitucional, tão ao gosto de Hipócrates, tão pertinente para a nutrição como fator de Saúde.
12. A Farmacoterapia beneficiou-se do Princípio Constitucional para modificar a visão maleficente, base do Princípio do Nihilismo. Houve o renascimento de drogas com melhor sistematização de indicações e de doses, com o objetivo de apoiar a constituição do paciente. Laxantes e calmantes assim ganharam popularidade.
13. A Homeopatia foi outro conceito reforçado pelo Princípio Constitucional, que incluía a visão oposta à agressividade, se doses altas são nocivas, doses baixas serão “amigáveis” para apoiar a luta contra a doença.
Em suma, o chamado Neo Hipocratismo surgido nos anos inicial do século XX reuniu as noções de organismo, natureza holística da doença, pluralidade etiopatogênica e o Princíoio Constitucional do tratamento e, assim, fundamentou a prática da beira do leito de então, sob o que foi denominado de tríplice diagnóstico – doença, paciente e seleção do tratamento.
O bioamigo perceberá o quanto é compatível com a Bioética e, portanto, como deve ter provocado encadeamentos de ideias que foram parar nos pioneiros da Bioética.
Diagnóstico da doença- Está em sintonia com a responsabilidade do médico em se comprometer com técnicas de raciocínio diagnóstico hipotético-dedutivo e de reconhecimento de padrão com a finalidade de construir diagnósticos sindrômicos, etiológicos, nosológicos e diferenciais.
Diagnóstico do paciente- Está em sintonia com o Princípio da Não Maleficência (Segurança) e da Autonomia. O médico dá individualidade ao doente, quer em relação a comorbidades de influência no prognóstico do benefício conceitual, quer em relação a preferências e a valores.
Diagnóstico da escolha do tratamento- Está em sintonia com o Princípio da Beneficência. A Medicina organizada em utilidade e eficácia de métodos terapêuticos cuja aplicação deve ser idealmente ajustada pelo Diagnóstico do paciente.
Passada a exaltação natural da Formatura, aqueles jovens orgulhosos de terem se tornado médicos, caem na realidade da necessidade de aprender a de fato serem médicos pela prática da Residência Médica. Eles irão adquirir inúmeros conhecimentos e habilidades que se lhes afigurarão como “prontas à espera”. Entrar, vestir, sair.
O tempo deles é curto. Por isso, espero que aqueles que ensinarão aqueles jovens médicos na beira do leito, respeitando que juraram um dia “… A partir de regras, lições e outros processos ensinarei o conhecimento global da medicina, tanto aos meus filhos e aos daquele que me ensinar, como aos alunos abrangidos por contrato e por juramento médico, mas a mais ninguém…” não deixem de lembrar-lhes que cada aquisição é fruto da dedicação e da vontade de acertar de notáveis nomes da Medicina e que cabe a cada um cuidar eticamente do patrimônio da Medicina.