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58-Medicina Defensiva para o médico ou para o paciente?

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Figure 1. Unadjusted Averages, According to Year, for Three Outcomes, in Three Reform States and in Control States That Did Not Pass Reforms. Unadjusted averages (according to state and year) are shown for three study outcomes in three states that changed the emergency care malpractice standard from ordinary negligence to gross negligence. Outcomes in control states without malpractice reform are also shown. For Texas, the control states were Arizona, Arkansas, Louisiana, New Mexico, and Oklahoma; for Georgia and South Carolina, the control states were Alabama, Kentucky, North Carolina, Tennessee, and Virginia. For each outcome–state combination, the average outcome for each calendar year is plotted against the midpoint of that year. Waxman DA et al NEJM 2014; 371:1518-1525

Quando ensinamos o significado ético de negligência ao estudante de Medicina, não costumamos quantificá-la. Ou é zelo ou é negligência. A ideia a ser transmitida é a de tolerância zero com suposições de deslize profissional na prática dos cuidados com a saúde do “seu” paciente.

Em julgamentos éticos sobre a possibilidade da ocorrência de negligência, fatores ditos atenuantes ou agravantes são analisados, com a finalidade de reduzir ou de acentuar a relação da conduta pessoal do médico com o dano em questão.

As circunstâncias de atendimento em Pronto Socorro trazem potencial de interpretações distintas sobre negligência. O momento do atendimento pode corresponder, por exemplo, a uma pobreza de significado clínico tanto das subjetividades da queixa quanto das objetividades de exames, que se enriquece algum tempo depois quando o paciente já foi dispensado. A sabedoria criou o jargão à alta: “… Se piorar, retorne…”, pois a chance existe apesar de “estar tudo bem”, aparentemente… Se não o paciente retornar, houve zelo do médico, se retornar, a visão de negligência põe-se de plantão.

Para se chegar ao diagnóstico necessário ou para se evitar “surpresas”, há os protocolos de atendimento referidos a queixas como dor precordial, a síndromes como insuficiência cardíaca ou a hipóteses diagnósticas como embolia pulmonar, aqui citados com o viés do cardiologista.

Quando a bateria de exames resulta negativa, há um alívio geral. Do paciente, obviamente, e do médico também, pois ele não é um insensível caçador de doenças.  Há a satisfação da vocalização da não-doença preocupante, da simplicidade da situação clínica e da perspectiva de fácil resolução com métodos farmacológicos rotineiros ou mesmo com desnecessidade dos mesmos.

Mas o cenário visível pode deixar na penumbra a possibilidade da aplicação de exageros de exames em face do raciocínio clínico de despreocupação com a situação clínica manifesta. É quando a captação dos fatos e dos dados,  filtrada pela experiência, não impacta como critério obrigatório para a realização de complementos com baixa probabilidade pré-teste, mas a solicitação é feita para “afastar diagnóstico”.

Este “vai que” finca-se num terreno movediço, com amplo determinismo histórico. O “olho clínico” perdeu a conotação de eficácia  quando foi se avolumando o “olho tecnológico”, não porque ele era um falso eficiente, mas porque se perdeu grande parte da acuidade construída pela vivência caso-a-caso, pelo feedback do cliente consulta-a-consulta com fidelidade. A miopia desenvolvida passou a exigir lentes grossas.

É óbvio que o “olho tecnológico” vê “por dentro” o que o “olho clinico” intui desde fora e, assim, amplia percepções objetivas. Mas abusos não podem ser  desconsiderados.  Eles têm até um nome no âmbito da Ética: Medicina Defensiva.

A Medicina Defensiva associa-se à ideia de menos chance de representações de suposta negligência e a realidades de gasto excessivo com a Saúde.

Estes dois componentes de forte impacto psicossocial têm sido motivo de movimentos para mudança de paradigma acerca da abrangência do termo negligência. Publicação recente no NEJM http://www.nejm.org/doi/pdf/10.1056/NEJMsa1313308  nos informa que há cerca de 10 anos aconteceram mudanças na legislação em alguns estados dos EUA, a respeito de atendimentos na Emergência. Houve uma “elevação do sarrafo” para a representação de suposta negligência no Pronto  Socorro, pela qualificação em grandezas  “maiores” como ato deliberado, ato precipitado, ato determinado.

Um objetivo é  evitar o entendimento de negligência na não execução de exames que, retrospectivamente, pela má evolução do caso, “deveriam ter sido realizados” num momento inicial. Em outras palavras, cabe representação de negligência  quando pode-se mostrar que o médico teve consciência efetiva  da possibilidade de dano sério, num determinado momento, mas, não obstante, procedeu com indiferença. Uma questão de definir o  tamanho dos poros da peneira para diagnóstico em face do percebido e não da conjectura.

A referida publicação estudou o impacto do “alívio da negligência” na prática em Emergência sob três aspectos: número de solicitação de exames de imagem como tomografia e ressonância, taxa de internação desde o Pronto Socorro e custos do atendimento na Emergência. A conclusão surpreendeu: não houve redução nos 3 aspectos anos após a mudança de legislação, exceto num estado – menos 3,6% no custo. Como o bioamigo pode observar nos gráficos que reproduzo do artigo neste blog, as comparações evidenciam igualdades.

Depreende-se, pois, que zelo não é percebido pelo médico como um valor quantificável com linha de corte para pequena e grande negligência de cunho legal. Há um forte e atávico componente ético-cultural envolvido na prática da Medicina. Ele admite, não somente,  o autonômico representado pela própria escala de valor do médico quanto a  percepções clínicas e a benefício dos exames, como também, o heteronômico por implicação trabalhista à luz de protocolos de atendimento. Ambos mostram-se sensíveis à prudência, à fidelidade ao futuro na tomada de decisão, em que a Segurança do paciente se destaca. É evidente que o  nível de preocupação narcisística de cada médico entra na equação.

Em suma, o termo Defensiva da Medicina Defensiva admite tanto o foco no médico – que respinga no abuso- quanto no paciente- que significa bom uso.

 

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