Acerto profissional é o mais frequente por ocasião de um atendimento médico. Parte dele deve-se à aprendizado a partir de correções de erros profissionais. Desde Hipócrates.
Na Medicina, ao contrário de tantas outras áreas do conhecimento, acerto profissional não significa necessariamente sucesso de resultado. Por mais que se pretenda uniformizações de conduta, normatizações por diretrizes clínicas e por protocolos de atendimentos, o substrato biológico de cada ser humano na circunstância clínica impede alcances exatamente iguais, inclusive opostos acontecem. Insucessos no campo da Medicina associam-se, pois, tanto a acertos (maioria), em função das adversidades inerentes aos benefícios, quanto a erros profissionais.
As gerações atuais convivem com um célere progresso científico que lhes provoca um sentido de notável eficiência da Medicina. As crianças não “precisam” mais contrair sarampo, coqueleche e caxumba como os avós. O terrível vírus HIV da década de 80 ganhou controle. A biotecnologia ampliou sobremaneira a qualidade da propedêutica e da terapêutica. Mais conhecimento teórico e prático sobre as doenças proporcionam melhor qualidade de vida e longevidade. Procedimentos invasivos temidos pela sociedade num passado recente ganharam percepção de risco mais descontraída.
Tanta inovação útil e eficaz aliviou a visão de morte como uma evolução das doenças, da ordem do presente nos antepassados. O óbito passou a ser considerado como evitável. Este contexto extrapolou a conjectura que morte de paciente sob cuidados médicos pode ter sido causada por um erro profissional. Insucessos, de modo geral, têm causado tal julgamento sumário, com certa frequência. À reboque, baixa a reputação dos médicos e acentua a desconfiança.
Há cerca de 20 anos, o médico passa a se preocupar em cuidar do paciente, não somente obediente ao estado da arte. Agrava-se o receio que sua atuação baseada num racional científico, que o seu raciocínio clínico sustentado por um conjunto de dados e fatos que julga bastantes, possa ser entendida como insuficiente e geradora de representações de imprudência e/ou de negligência. Ou seja, o tradicional compromisso de empenho na busca do melhor resultado combina-se à prática de atestar que qualquer possibilidade, mesmo as de baixa probabilidade, foi objetivamente examinada. A representação tradicional dos órgãos mentalizada pela anamnese e pelo exame físico sofre tremendo assédio pelos métodos de imagem e a exigência pelos mesmos ultrapassa o conceito da complementaridade.
Excedem-se os limites da segurança. Vai-se muito além do necessário para uma vigilância sensível às evidências científicas e respeitosa à Ética. Levanta-se a questão: Real defesa para a saúde do paciente ou exagero de atitude de defesa do médico? Uma separação do joio do trigo nem sempre fácil.
Verifica-se que pseudópodos do exagero infiltram-se na rotina e trazem a sensação de dever de fazer. A insegurança com o resultado contamina a segurança nas tomadas de decisão. O vai que sustenta uma desmedida do clássico conceito que o médico deve atuar no sentido da mais alta probabilidade, embora atento a outras possibilidades que nunca se esgotam. Exige-se, atualmente, o prévio e bem documentado “esgotamento”, inserido na cultura do afastar diagnóstico, que, habitualmente, faz restar o óbvio. Compromete-se a objetividade.
Estamos assim falando da prática que ficou conhecida como Medicina Defensiva. Na verdade, duplamente ofensiva, pois ataca com extremo vigor qualquer acaso, e, ao mesmo tempo, ofende os saberes vigentes da Medicina. Ela representa uma máxima configuração de segurança, uma filtragem de possibilidades remotas por poros diminutos, na onda da exaustão, certamente desnecessária segundo as boas práticas validadas.
A Medicina Defensiva é exercício do supérfluo sustentado pelo médico, que, muito embora, esteja convicto da sua prudência, do seu zelo e da sua perícia, convencido que está praticando conforme a Medicina que se ensina, tem receio de ser processado por má-prática e, receber uma pena ética e/ou de natureza legal, em situações de insucesso diagnóstico/terapêutico. Ela se fortalece no encaminhamento desnecessário a colegas para compartilhar responsabilidade e não para uma opinião mais experiente, na solicitação de exames com baixa predição de anormalidade e nenhuma importância na circunstância clínica, na prescrição de medicamentos destituídos de uma lógica preventiva ou terapêutica, apenas para dar a sensação de cuidado e na repetição de exames para controle evolutivo tão somente para documentação.
O “faço para não ser processado” da Medicina Defensiva tem muito a ver com a não comunicação médico-paciente. É falta que prejudica o esclarecimento e facilita que as lacunas sejam preenchidas por analogias ou por imaginação. É carência sobre o fato de a internet provocar exigências por métodos da Medicina. É privação a respeito do noticiário de destaque da imprensa acerca de atendimentos inexitosos, que, de certa forma, alimenta um direcionamento para “entrar com um processo”, independente da superposição ou não da situação então vivenciada àquela lida. O diálogo médico-paciente sincero, atencioso, técnico e tolerante sempre foi e sempre será a mais ética “defesa” do médico, assim, pela reciprocidade esclarecedora, reduzindo a valorização da Medicina Defensiva, caso a caso.
A Medicina Defensiva tornou-se um ralo de desperdício dos sempre insuficientes recursos disponíveis na Saúde. Na Emergência, um caminho desejável para fechar o ralo é a aplicação de Protocolos de Atendimento que respeitem a literatura médica e as peculiaridades regionais, que não desrespeitem a autonomia do médico, graças a discussões que evitem que soem como impositivos, e que preencham um correto sentido de custo-efetividade. Em outras palavras, o paciente considerado como ser humano merecedor de um quantum satis de segurança, sem que seja entendido como fonte de ganho financeiro indevido.
Por outro lado, iniciativas como Choosing Wisely e Slow Medicine, com o substrato conceitual que fazer menos pode não significar omissão, exemplificam o valor do caminhar médico-paciente individualizado e solidário. A ênfase na singularidade pressupõe boa comunicação que esclarece prontamente e proporciona ajustes. Em outras palavras, a construção de uma base de franqueza para o pari passu evolutivo, que afasta ilusões e impede desnecessidades. Longe de ser uma vacina contra processos e má-fé, mas, certamente, uma atitude positiva para o acolhimento de intenção de estratégias diagnósticas e/ou terapêuticas.
Grande óbice a uma individualização é a carência de tempo. Para o uso do tempo escasso, solicitar exames, fazer prescrição “guarda-chuva” ou encaminhar a outra especialidade é mais rápido do que maturar dúvidas e probabilidades.
O tema Medicina Defensiva reforça a responsabilidade dos professores de Medicina sobre a formação de médicos conscientes das medidas corretas da cultura de segurança perante as muitas incertezas do dia-a-dia. Ao mesmo tempo, para a redução das crises da beira do leito desencadeadas pelo desconhecimento técnico por parte do leigo, é capital que haja ânimo para o esclarecimento da sociedade sobre as limitações da Medicina, incluindo uma contribuição mais pedagógica e menos sensacionalista para a compreensão dos insucessos de resultados e de erros profissionais na área da Medicina, pelos distintos meios de comunicação.
Por fim, é oportuno destacar que não faltam evidências que médico e demais profissionais da saúde brasileiros – salvo exceções que confirmam a regra- esforçam-se em atuar no limite superior da dedicação e da habilitação, apesar de notórias deficiências do sistema de saúde. E que erros profissionais acontecem pelos mesmos seres humanos que praticam acertos profissionais.
A Medicina Defensiva parece estar em ascensão. É realidade que contraria princípios da ciência e da consciência e que não parece trazer real benefício para as necessidades de saúde de cada paciente. Mas, a bem da verdade, que atire a primeira pedra, quem nunca a praticou…
Suposições sobre ato médico que não pode ter plataforma estruturada em ciência exata correm o risco de desaguar em injustiças. A Bioética vê com apreensão qualquer desequilíbrio entre a visão ética e a visão legal da Medicina.
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