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102-Má ética, má ciência

Baruch Samuel Blumberg 1925-2011)
Baruch Samuel Blumberg (1925-2011)
Saul Krugman (1911-1995)
Saul Krugman (1911-1995)
Willowbrook State School, Staten Island, New York
Willowbrook State School, Staten Island, New York

Um dos direitos do voluntário em pesquisa clínica é estar protegido de danos, invalidez ou morte causado pelo método em estudo.

Há vários exemplos de pesquisas conduzidas no século XX com evidentes falhas éticas. Eles tornaram-se alertas históricos reversores, assim contribuindo para a eticidade exigente dos tempos atuais.

O aperfeiçoamento da Ética em Pesquisa teve 3 documentos capitais: o Código de Nuremberg, em 1947, a Declaração de Helsinki, em 1964 e o Relatório Belmont, em 1979. Eles concorreram para relembrar o ensinamento de Claude Bernard (1813-1878): “… O princípio da moralidade médica e cirúrgica consiste em nunca realizar no homem um experimento que lhe possa ser danoso, em qualquer intensidade, até mesmo se o resultado pudesse constituir-se num grande avanço para a ciência…”. Ademais, o trio sustentou a aplicação dos novos princípios da autonomia e da equidade, assim, reforçando, não somente o benefício e o consentimento, como também a hipocrática Não Maleficência que estava sendo desrespeitada. Em consequência, o significado de sujeito da pesquisa adquiriu uma mais correta dimensão humana.

Vou abordar neste post o que aconteceu no Willowbrook State School na Staten Island, New York, uma escola para crianças com Deficiências Intelectuais. No período de 1956 até 1971, mais de 700 internos foram envolvidos numa pesquisa sobre o “período de incubação” e o desenvolvimento da manifestação clínica da hepatite. Eles foram inoculados com material de pessoas doentes e recebiam gama globulina obtida de  indivíduos  que tiveram hepatite, sob a hipótese de atenuação do quadro clínico.

O pesquisador responsável foi Saul Krugman (1911-1995), um médico que se destacara por trabalhos sobre o sarampo e que após o término da controversa atuação na Willowbrook State School tornou-se Presidente da American Pediatric Society, em 1972, e foi homenageado com a prestigiada Kock Gold Medal, em 1978.

Análises históricas sobre a natureza humana necessitam do cenário original.  Recorde-se que há cerca de 7500 anos, o aparecimento das tribos centralizadas fez com que as pessoas aprendessem a conviver com estranhos sem tentar matá-los, como era habitual quando se constituíam em pequenos bandos familiares e se encontravam em algum ponto do caminho do caráter nômade. O catalizador da solução da agregação entre indivíduos sem parentesco foi o desenvolvimento de uma ideologia- nacionalismo, por exemplo-, ou uma religião. Reduzia-se, desta maneira, a indiferença do ser humano ao próximo não geneticamente associado. Contudo, sujeita a manipulações do poder.

Krugman representava linha de pensamento que colocava um pesquisador acima do mundo em que estava praticando a pesquisa. A acima referida indiferença pelos não afetivamente valorizados é o termo adequado. Indiferença com o sujeito de pesquisa. Um poder por ligação extremada com o “progresso da ciência”, o seu “irmão”. Uma ideologia de que tudo é permitido, tudo é relativo na construção do que se julga que será uma verdade com perspectiva de beneficiar a Humanidade. Ironicamente, todavia, o estudo sobre hepatite realizado por Krugman não foi vital para o conhecimento sobre a doença e, certamente, não seria aprovado por uma Comissão de Ética em Pesquisa atual.

Felizmente, a Indiferença foi afastada dos conceitos sobre boas práticas do vínculo pesquisador-voluntário de pesquisa. Exige-se conexão humana e repudia-se a ambição profissional centrada numa ciência à margem da Ética, na visão autoritária sobre o sujeito de pesquisa como uma cobaia, como uma placa de Petri (Julius Richard Petri, 1852-1921, assistente de Robert Koch), como um corpo que, por estar doente, torna-se sub-humano e obriga-se a fornecer informações, não importa se à custa de um dano para si.

Relaciono a seguir 10 argumentos e contra-argumentos utilizados por Krugman e por seus críticos, que entendo altamente instrutivos sobre a interação entre consciência profissional e conveniência científica a respeito e com respeito ao paciente/voluntário.

1.       A escolha pelo Willowbrook State School deveu-se ao elevado grau de contaminação entre as crianças que era causado pela superpopulação e pela baixa higiene, determinando cerca de 90% de chance de contrair a hepatite após um ano de internamento. O motivo, assim exposto por Krugman, não teria sido a Deficiência Intelectual, a penúria social das famílias que por falta de recursos eram obrigadas a deixar seus filhos num estabelecimento que o político Robert Francis Kennedy (1925-1968) visitou e classificou como um “ninho de cobras”.

Neste caso, disseram os críticos, porque não foram incluídos, até de modo preferencial, nenhum dos cerca de 1000 funcionários adultos da Willowbrook State School?

2.       Esta questão parece estar ligada ao consentimento para a pesquisa. A superpopulação determinou severa restrição a admissões à época da pesquisa. Não obstante, a ala do Dr. Krugman tinha vagas, evidentemente, para o filho de quem assinasse o termo de consentimento para a pesquisa. Nela, os cuidados gerais eram superiores e afastavam estas  crianças “privilegiadas” de outras moléstias.

3.  Krugman argumentava que não acrescentava riscos excessivos, que, na verdade, estava fazendo uma observação natural. Mais cedo ou mais tarde, a hepatite aconteceria pela endemia institucional. Ele insistia que não era anti-ético um “toma lá, dá cá” entre facilitar a admissão num local “especial” e retribuir com o consentimento para a inoculação de material contaminado “sob controle”.

4. Chantagem, coerção, um prêmio para a adesão, um aproveitamento da vulnerabilidade pessoal, social e econômica  servindo para dar origem a achados clínicos sob hipóteses científicas. Nenhuma iniciativa para melhorar as condições da Escola como um todo foi documentado para a História.

5. Ele insistia que não era anti-ético um “toma lá, dá cá” entre facilitar a admissão num local “especial” e retribuir com o consentimento para a inoculação de material contaminado “sob controle”.

6. Havia um Termo de Consentimento para assinatura pelos pais. Contudo, ele dava a entender que a hepatite seria branda e determinaria imunidade definitiva. A interpretação leiga era que haveria uma vacinação. A necessidade de se liberar do ônus domiciliar da criança com Deficiência Intelectual por pais pouco letrados contribuía para um entendimento de benefício.

7.  Em pouco tempo, os pesquisadores comprovaram que o uso de gama-globulina obtida de paciente que tivera hepatite suavizava o quadro clínico. A conclusão, todavia, não foi suficiente para interromper a pesquisa e institucionalizar o uso da gama-globulina. Como em Tuskegee, onde portadores de sífilis foram impedidos de usar a penicilina que surgira do decorrer da pesquisa, a Indiferença dos pesquisadores impossibilitava o real benefício aos sujeitos de pesquisa.

8.   No período em que a pesquisa foi desenvolvida, Baruch Samuel Blumberg (1925-2011) conseguiu isolar o vírus da hepatite em laboratório, dispensando, assim,  novas coletas humanas – ganhou o Prêmio Nobel para Fisiologia ou Medicina em 1976- e já havia uma boa definição das diferenças entre hepatite A e hepatite B.  Prosseguir no estudo em Willowbrook State School apenas para acompanhar o quadro clínico não se justificava.

9.   Krugman revelou mais do que desinteresse pelas crianças estudadas, ele se posicionou num mundo fora daquele ambiente que privilegia a pura objetividade em detrimento da subjetividade, que não se importa em ter provocado a doença deliberadamente, como se a Escola fosse um Laboratório natural para observar a reação biológica a uma doença que acontecia somente porque a criança lá estava. Indiferença, sem dúvida, um pecado do pesquisador.

10.  Krugman  foi insensível às ponderações publicadas que não cabia ao médico provocar doença. Não era um valor profissional pró-vida, era atitude desumana. E que fazia lembrar os piores exemplos de pseudo médicos  severamente condenados em Nuremberg. Ele nunca modificou seu argumento que “suas crianças” estavam sendo beneficiadas, não somente pela atenuação do quadro clínico, como também pela acomodação privilegiada. Um preço justo, no seu entender.

Cada época tem a sua moralidade, o seu grau de tolerância, a sua visão de benfeitor da Humanidade. A Medicina coleciona uma infinidade de entusiasmos que se tornaram decepções. Pelos padrões atuais, na maioria dos países, Krugman não teria sido homenageado nem como presidente de sociedade de especialidade, nem com medalha de ouro.  Ou ainda não é bem assim?

Por fim, desejo transcrever o artigo 101 do Código de Ética Médica vigente no Brasil, com especial atenção ao parágrafo sobre menor de idade: É vedado ao médico deixar de obter do paciente ou de seu representante legal o termo de consentimento livre e esclarecido para a realização de pesquisa envolvendo seres humanos, após as devidas explicações sobre a natureza e as consequências da pesquisa. Parágrafo único. No caso do sujeito de pesquisa ser menor de idade, além do consentimento de seu representante legal, é necessário seu assentimento livre e esclarecido na medida de sua compreensão.

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