A boa memória profissional é imprescindível para atuação do médico. Desde tempos imemoriais!
Geração após geração, o médico usa e abusa da memória. Ele precisa confiar na própria para vários atos. A memória do paciente qualifica a anamnese.
Todavia, atitudes de “máxima confiança” na memória são sempre passíveis de questionamento. A sociedade convive com a dúvida do credor sobre como se comportará a memória do devedor e com a situação curiosa do sentimento que, embora repetido, é auto-registrado como sua primeira vez.
Apreciações sobre o cotidiano dos médicos, quer em nível de gestão, quer em demanda ética e/ou legal, confirmam o risco de deslizes causados por cascas de banana jogadas no caminho pela memória. Assim erros cognitivos, eles resultam em evitáveis insucessos diagnósticos e terapêuticos. Outro escorregão é o indevido uso da memória que revela sigilo profissional.
Há o paciente que conta o presente e o passado mórbido com a chamada memória de elefante. Há o paciente que pouco se recorda da sua história clínica. Há o paciente que, intencionalmente, torna a boa memória uma fonte de mentiras, pois só mente quem sabe a verdade. Há o paciente para quem a memória lhe é desleal no resgate dos fatos, ele não diz uma verdade mas não está mentindo, ou seja, está sendo sincero em relação ao que lhe vem à mente, embora equivocado.
Por sua vez, o médico coleciona várias modalidades de uso da memória, associadas ao conhecimento e às habilidades, sendo que especialidades valorizam certas peculiaridades. Há a memória visual do facies e da inspeção dermatológica. Há a memória auditiva para ruídos cardíacos e pulmonares. Há a memória que permite a lembrança fácil de síndromes e de epônimos.
O médico precisa ter cuidado para não ser “traído pela memória”. Por isso, o visão de facilidade do prontuário do paciente e do vademecum (vem comigo) com suas roupagens na moda da época, atualmente, expressas no registro eletrônico e em aplicativo fácil à mão e aos olhos.
Não há dúvida que a continuidade do exercício profissional à beira do leito influencia a qualidade da memória do médico. A repetição amiúde contribui para a excelência da transmissão da memória para a ponta dos dedos e para a ponta da língua. É imensurável o quanto o especialista costuma esquecer do que aprendeu desde estudante de Medicina no trajeto do aprofundamento seletivo que prioriza a sua “capacidade de gigabites” para armazenamento.
A lei 3268/57 que dispõe sobre os Conselhos de Medicina não liga inscrição e especialidade. Em tese, médicos regulares no Conselho Regional podem praticar qualquer ato médico validado. Evidentemente, cada um deve ter a responsabilidade de saber seus limites da memória atualizada para praticar, inclusive a de reconhecer o que jamais a memória teve oportunidade de contato para fixação.
É notório o quanto vagos na memória profissional “minimamente necessária” determinados, quer pela má formação profissional, quer pela desatualização progressiva, são etiopatogenias da infração ao artigo capital do Código de Ética Médica vigente: É vedado ao médico causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência. Parágrafo único. A responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser presumida (Art. 1º, Capítulo III, Responsabilidade Profissional).
A Bioética concebeu-se em meio ao amadurecimento do sentimento de indignação provocado pela memória histórica sobre uma Medicina eticamente reprovável.
Esta “genética” é essência da Bioética da Beira do leito como referencial para o juízo do médico- e do profissional da saúde de modo geral. A memória sobre efeitos da relação intenção de benefício-risco de malefício é patrimônio “tombado” pelo Progresso da Medicina.
A Bioética da Beira do leito estimula a difusão da mensagem amigável sobre o vigor da memória como instrumento de trabalho: Lembre-se de não se esquecer da memória!