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HM 27- Sete pecados capitais à beira do leito

pecadosPecado não é uma palavra habitualmente utilizada em Bioética. Todavia, reflexões conectadas com a Bioética clínica admitem extensões do significado religioso primário para secundários sentidos de desobediência a diretrizes clínicas, transgressão a princípios de não maleficência, violação do direito à autonomia, ilicitude ética ou legal. Na beira do leito, muitos se referem a negligências e a imprudências como um pecado cometido pelo profissional da saúde, a não consentimento, interpretando-o como um pecado realizado pelo paciente e, comentam sobre adversidades da aplicação do benefício como um pecado ter acontecido. É o idioma vivo incluindo a ideia de má ocorrência na abrangência da relação médico-paciente.

Pecado, cada um tem os seus. Pecado, cada um o enxerga nos atos dos outros a sua maneira. Adjetivações à conotação religiosa não faltam: original  associado a Adão e a Eva, mortal, ligado à gravidade e a plena consciência transgressora e capital, uma seleção de sete. Três destes exibem, atualmente, significativa conexão com a saúde física: gula- endocrinologia; luxúria- urologia/ginecologia/doença sexualmente transmissível e preguiça-cardiologia. Os demais quatro pecados (ira, soberba, inveja e avareza) incluem-se em interesses sobre a saúde mental.

São sete também os pecados da Medicina na concepção do médico inglês Richard Alan John Asher (1912-1969) manifesta há cerca de 70 anos, na tradicional revista Lancet. Os escritos de Asher  são atemporais e pela capacidade de enxergar bem e mal nas entrelinhas da relação Medicina-médico-paciente devem ser expressões do pensamento crítico que desaguou na Bioética nos anos 70 do século XX. Uma exposição nua e crua do ambiente da Medicina numa época de prodigalidade da observação direta do paciente e carente da magnificência da tecnologia atual. Não obstante, suas percepções não são tão distintas de muitas preocupações com a Medicina das primeiras décadas do século XXI.

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Crédito: http://sp.depositphotos.com/vector-images/doctor-with-patient.html?qview=11592894

A relação dos sete pecados (Quadro) forma em português o acrônimo PESCADA. Ela foi apresentada precedida da bem humorada e ferina mensagem: “… Concentrei-me em sete, mas eles são em número ilimitado… A leitura deverá ajudar aos estudantes que desejam evitá-los e também àqueles que desejam entregar-se aos mesmos, aumentar o seu repertório ou refinar a técnica…”.

Preguiça

Anamnese completa e bem feita e exame físico são essenciais. O avanço da tecnologia encoraja, porém, a descuidar destas pilares da Medicina. Esta tentação e o uso indiscriminado do laboratório e da radiologia promovem hábitos pouco laboriosos e tomadas de decisão descuidadas. Estimula a preguiça e desperdiça recursos.

Estupidez

Apresenta-se como automatismo médico, quer diagnóstico, quer terapêutico. Automatismo significa a falha de reconhecer a necessidade de ajustes à individualidade do paciente, atuar  sem questionamentos ao fluxo de rotina. Provoca maus cuidados e desperdício de recursos.

Superespecialização

É certo que o médico deva ter um interesse especial e conhecimento sobre um assunto. É errado mostrar indiferença especial e ignorância sobre os demais assuntos. Há centros que encorajam e recompensam “mais e mais sobre menos e menos”. Consultores em demasia minam a confiança individual nas próprias habilidades e geram a sensação-receio de estar “esquecendo de algo”. O crescimento das especialidades de medicina de urgência e de paciente crítico representa uma visão global “horizontal” das necessidades do paciente, diferente da perspectiva “vertical” de sub-especialistas, órgão-específica.

Crueldade

Há a crueldade física e a mental.  Este pecado  é o mais importante e prevalente e gera ansiedade no paciente por estar associado a falar muito (palavras ditas) ou a falar pouco (palavras não ditas). Palavras e mãos têm o poder de curar ou de ferir. Exemplo de crueldade mental é a discussão do caso e o ensino à beira do leito esquecendo-se da presença do paciente, como se ele não lá estivesse ou se apresentasse em inconsciência. Um desrespeito à pessoa do paciente, considerado como um indivíduo à parte da visita. Deve-se usar os métodos com inteligência e discrição e aprender a refrear  certos  entusiasmos e a recusar-se a investigar para “completitude do interesse” ou para mera satisfação de curiosidade intelectual.

Ausência de clareza

A comunicação escrita ou verbal tem que ter clareza. Alguma falta de clareza intencional pode representar tentativa de esconder a ignorância. Má comunicação  verborrágica ou demais sucinta gera incerteza e confusão.  Deficiências da formação do médico contribuem para que médicos e professores de Medicina pareçam incapazes de  apresentar suas ideias com clareza. Neste contexto, a adoção de leitura séria e não profissional  é útil e deve ser estimulada.

Descortesia

Descortesia com paciente e colegas de trabalho acontecerá numa hora ou noutra. Todos já fomos culpados deste pecado, induzidos pela impaciência gerada pela tomada de uma anamnese de um paciente pouco articulado ou, então, em ocasiões de “humor de cadafalso” manifesto pelas costas de um paciente.

Amor ao raro

O estudante de Medicina é a ele tentado pelo professor-pesquisador, que frequentemente tem pouco a dizer sobre o amplo espectro da doença, mas tem um enorme compromisso para falar sobre o específico, por vezes limitada área de interesse.

Asher descreveu a síndrome de Munchausen, contudo suas narrativas eram fortemente realistas ao contrário do Barão de Munchausen, um personagem da literatura alemã que contava fantásticas histórias por ele vivenciadas,  e que se admite inspirado na vida de  Hieronymus Karl Friedrich von Münchhausen (1720–1797).

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COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Penso sempre em uma frase que minha mãe me ensinou: “os nossos pecados carregamos sobre as costas e as virtudes enxergamos no espelho.” Desse modo é sempre mais fácil perceber o pecado no outro e nossas qualidades quando alimentamos nossa vaidade. Fato é que todos temos pecados. Fato é que todos temos virtudes. Ao longo do tempo podemos ir carregando pesos e pesos que nos encurvam, tiram os olhos da linha do horizonte e propiciam tropeço e queda, já que o andar perde beleza, elegância e leveza e a linha do olhar fica limitada ao chão. Procurando enxergar o que nos pesa, olhando para trás, podemos reconhecer que o pecado que há no outro também pode estar pousado em nós. Isso gera compaixão por si e naturalmente pelo outro. Possibilita ir compreendendo o(s) nosso(s) pecado(s), tão inerente ao humano. Facilita a opção por retirá-lo(s) de nossas costas. Isso exercitado nos permite devolver à coluna vertebral, nosso eixo, a flexibilidade e lateralidade. Possibilita olhar adiante e ao lado. Com o olhar novamente alinhado o que veremos no espelho será verdadeiro e brilhante.
    Professor Max obrigada pelos textos tão preciosos.

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