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HM 24- Jurar é Hipocrates, perjurar é hipocrisia

Nome? Sobrenome? Um único e sintetizador: Hipocrates (460 ac-370 ac). Um imortal há 2500 anos! Um dos pouquíssimos nomes do período pré cristão valorizados na atualidade brasileira.

Tudo leva a crer que Hipocrates nunca deixará de exercer influência na beira do leito apesar da constante renovação da Medicina. Hipocrates não é personagem poeirento do museu História da Medicina, ele é um redivivo sem fim, um homem-época presente geração após geração de médicos aqui e acolá. Personagem decisivo para os cuidados com a saúde da humanidade, o obstinado e intuitivo Hipocrates não é tão somente alguém que redirecionou a Medicina por um acidente de posição, grande parte da sua significação, da sua originalidade e da sua liderança decorre das marcas positivas do caráter e da personalidade.

Os filósofos ensinam que só dura o que sofre mudanças. Antes que soe paradoxal, eles apressam-se a fazer ver que a água corrente do rio que vai passando sob a ponte nunca é a mesma. OK, água é tudo igual, fica fácil entender a reflexão. Mas, a apreciação vale também para o conceito de atualização, modernização, por exemplo, na figura do ato médico.

Evidentemente, os atendimentos que ocorrem no presente guardam distinções dos acontecidos no passado. Todavia, o pretérito, não obstante ser imutável quanto aos fatos, movimenta-se ao futuro como tradição. A transmissão é a forma que dá consistência à modelagem das inovações.

Assim, o ato médico persiste existindo porque admite a continuidade de adaptações ao progresso da Medicina sobre bases clássicas. É notório que o ser médico em cada profissional modifica-se inexoravelmente da formatura à aposentadoria, embora mantenha, “hipocraticamente”, a prática da anamnese e do exame físico.

Ajustes diligentes nas atitudes no seio da relação médico-paciente/família representam calor humano para compensar a frieza do desenvolvimento científico. A manutenção de uma calorimetria da beira do leito confortável ao momento sociocultural é exigência ética nas incorporações das novidades técnico-científicas. Quanto mais afastamento houver do que já está acostumado pelo tempo, mais caloroso deve ser o profissionalismo bem-vindo à beira do leito.

Fator da continuidade por sucessivas mudanças é o posicionamento do idealismo dos jovens médicos na correnteza da Medicina. Ele ocorre “oficialmente” à formatura, quando eles declamam um “sempre atual” Juramento,  visando um “sempre adiante” cumprimento.

De fato, reverenciando a memória de Hipocrates perante professores honrados e familiares emocionados, novas levas de recém-formados assumem valiosa herança. Firmam o compromisso de honrá-la pela dedicação a um profissionalismo.

Daí em diante logo perceberão a necessidade galopante por ajustes à época, entendendo pela frequência à beira do leito que sem eles a preservação da tradição multissecular ficará prejudicada. Após imergir na água técnico-científico-humana do rio caudaloso de todos os tempos chamado de Medicina, é essencial sentir-se integrado ao fluxo, contribuir para a manutenção da viabilidade do ecossistema da beira do leito.

Todavia, movediças realidades do pós-juramento, irão ameaçar a fidelidade ao simbolismo do Juramento de Hipocrates. Não faltarão obstáculos de toda sorte, internos e externos. Ambições, frustrações, inquietações e camuflagens da natureza humana irão se repetir como desafios e confrontos com o profissionalismo jurado e gerar risco de perjúrio. Um indicador cruel é a taxa de violação da conformação atual de Apolo, Esculápio, Hígia e Panacea na figura do Código de Ética Médica.

O ser médico e humano expõe-se obrigatoriamente aos fascínios da tecnologia,  aos desencantamentos com recursos financeiros, às desconstruções críticas, às não percepções de estratagemas e aos atrativos de cantos de sereia, todos estes fontes reincidentes de fragmentação da promessa solene do “Eu juro”.

Por isso, como o juramento dos formandos de nossas Escolas Médicas cuida da intenção do fazer, há o Código de Ética Médica para fazer relembrar – com amplificações- eventuais amnésias. É capital, assim, não deixar ambos os textos no esquecimento.

Até porque no limbo da comparação está o dia-a-dia que testemunha reivindicações e insatisfações de pacientes argumentando contra o médico com base num “estado permanente de juramento”. É aviso de cobrança a que todos os médicos estão  sujeitos a pagar a conta.

O Juramento de Hipocrates está longe de ser unanimidade. Objeções incluem que ele é vago, que os deuses referidos nem sempre são entendidos pelo sentido metafórico e que os órgãos fiscalizadores não estão no Olimpo.

Sustentados por excessos de racionalidade e por insensibilidades ao valor da história, médicos em diversos países se incomodaram com os anacronismos e produziram  modernizações do Juramento de Hipocrates. O interesse é que os novos textos continuam homenageando o Pai da Medicina, na medida em que são denominados de modernizações ao Juramento de Hipocrates. De alguma forma, eles seguem a premissa que só dura o que muda.

Longe de pretender a aposentadoria de um símbolo da Medicina vigente e antes de o classificar como presente de grego, parece útil analisar as premissas das modificações.

Os juramentos modernos abordam o estímulo ao  benefício -não somente  afastar o mal- a promoção do novo conhecimento, a incorporação de habilidades recentes em prol do paciente e o fornecimento de conselho e orientação para paciente e família, não apenas o cuidado com órgãos doentes.

Honestidade, Sigilo e Qualidade resumem os valores maiores da trilha a ser percorrida na relação médico-paciente/família e no cuidado com a saúde da sociedade de modo geral.

Honesto, confidente e eficiente é, portanto, o retrato falado do médico, captado nos juramentos modernos-  o arquétipo do médico ponderado para a sociedade.

Para a satisfação dos pré-requisitos, proferir o Juramento é assumir compromissos bioéticos  com a opinião dialogada, confiança, maior benefício com menor prejuízo, atenção com a saúde pública, educação continuada, acúmulo de experiência pessoal, espírito de pesquisa e coragem para enfrentar  os eventos adversos.  Pelo senso de responsabilidade, ele se obriga a fomentar o bom caráter, consultar sua consciência para se afastar de atos condenáveis e contribuir para  a boa imagem  da profissão, inclusive a defendendo das circunstâncias que  atrapalham atuar segundo os princípios éticos/bioéticos.

Como conciliar o uso de um simbólico- e atemporal- Juramento de Hipocrates com os sentimentos da época? Como somar força da tradição e vigor da realidade social?

Afigura-nos muito proveitoso que a declamação do tradicional texto do Juramento de Hipocrates esteja acompanhada da  virtualidade das promessas “mais modernas” na mente dos recém-formados.

Atrevo-me a propor, como alegoria à fidelidade na beira do leito, que os novos médicos passem a jurar com a mão direita sobre o Código de Ética Médica-  que ricamente encadernado  seria, aliás um presente e tanto de formatura.

O quadro nos recorda um pouco-muito de Hipocrates.

De Hipocrates e não muda

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