Um dos aspectos mais interessantes da terapêutica é o uso de um medicamento para desregular o normal o bastante para não provocar males e assim permitir um benefício para a situação clínica. Este é o racional do anticoagulante, menos coagulação mas não hemorragia, menos trombose, menos trombembolismo. Mas o real nem sempre comporta-se como desejado. Anticoagulante pode falhar na antitrombose e pode se associar a hemorragias. Por isso, o seu uso exige estreita relação médico-paciente e infra-estrutura accessível, ligando Medicina, médico, paciente. instituição e Saúde e Sistema de Saúde.
O caminho do anticoagulante varfarina foi longo e diversificado. Inicialmente, na década de 20 do século passado, veterinários observaram que o gado sofria hemorragia pelo consumo de trevo doce armazenado. Depois, a substância causal, denominada de dicumarina foi identificada e na sequência o norteamericano Karl Paul Link (1901-1978) descobriu a varfarina. A seguir, sabendo-se que os ratos brigam entre si, lançou-se a varfarina como raticida, eles sangrariam pelos machucados até a morte. Um dia, um soldado americano decidiu se suicidar ingerindo o raticida, mas sobreviveu graças a atuação médica que mostrou que a substância química poderia ser controlada. A varfarina tornou-se um medicamento para controlar a coagulação, evitar a formação de coágulos indesejados para a circulação sanguínea. O presidente norteamericano Dwight David Eisenhower (1890-1969) teve um infarto do miocárdio em 1955 e recebeu a varfarina, a boa evolução clínica deu repercussão à conotação de benefício farmacológico do ex-raticida. Surgiu um exame laboratorial para normatizar a dose a ser administrada que não deveria ser nem baixa para não deteriminar antitrombose nem alta para indiuzir hemorragia. Precebeu-se que a “arritmia mais arrítmica”, a chamada fibrilação atrial, era fator de trombose intra-cardíaca e depois de um período de hesitações, na década de 80, a varfarina passou a ser administrada na rotina dos cuidados com esta arritmia- e em outras situações clínicas de trombose ou de potencial de trombose.
Modificar a fisiologia de uma pessoa com objetivos terapêuticos exige uma dinâmica da Bioética da Beira do leito que é a passagem da recomendação médica pelos pedágios do Benefício e da Segurança. Não basta haver a indicação validada para a aplicação, é essencial que não haja contra-indicação (o paciente em vigência de uma hemorragia, por exemplo) e que haja cuidados com a continuidade do uso.
A Segurança requer a clareza dos esclarecimentos ao paciente -ou seu cuidador-, é preciso fornecer informações sobre interações medicamentosas e alimentares, é preciso conscientizar sobre precauções contra acidentes, é preciso a responsabilidade do paciente para cumprir etapas do controle do tratamento e para ficar atento a indícios de hemorragia a serem comunicados ao médico.
A Bioética da Beira do leito estimula esta via de duas mãos da relação médico-paciente e valoriza a História da Medicina como ferramenta-guia para a convivência entre o clássico e a inovação.
Uma resposta
A medicina está repleta de medicamentos que foram descobertos ao acaso. Mais recentemente não tivemos o Viagra mudando o rumo da sexualidade na terceira idade? Logicamente, se não houver um bioamigo ao lado do leito para orientá-lo na alta das consequências do uso concomitante com nitratos, adeus quarta idade.
Mas vou para outro território. Há uma história muito interessante sobre a Amazônia. Bruno Latour com equipe multiprofissional, composta de pesquisadores brasileiros e franceses, estudava a relação entre a savana e a floresta. Afinal, era a savana que avançava sobre a floresta ou era a floresta que recuava? Foram retiradas amostras de terra de todos os lugares e enviadas para análise em laboratórios franceses. Depois de muito tempo: a surpresa. A resposta não encontrava-se em nenhuma das duas hipóteses. Desmatar e colocar fogo levaram também as minhocas e eram elas que fertilizavam o solo com suas fezes. Dai a savana se manter e a floresta não se recuperar. Quem imaginaria que os dejetos de um invertebrado que meu tio usava como isca para pescar poderia trazer tal transtorno à humanidade! A ciência é assim, cheia de incertezas, suicídios e assassinatos. Mas qual o motivo de citar Bruno Latour? É que Bruno Latour tem um livro muito interessante sobre questões relacionadas à ciência, lá tem Pasteur entre outros. Vale a pena ler: A esperança de Pandora. É um livro que nos faz pensar na relação benefício/malefício da ciência.