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26-Eutanásia mexe com você?

seneca
Seneca 4ac-65dc                    Vivi bem. Desejo morrer bem

O caso recente  da norteamericana BM  saiu do noticiário depois que ela cometeu o suicídio assistido. Ele não mais preenche critério para manchete, muito menos de pauta de páginas internas, esgotou-se pelo endpoint atingido. A presença de um rosto  que circulou  pela internet  provocou a solidariedade, contribuiu para que o tema da morte ficasse vivo enquanto não acontecia o dia final iminente.

Muitos deram suas opiniões. O envolvimento humano foi importante para provocar a aproximação ao tema da morte que habitualmente é colocado à distância desde a infância.  Qualquer análise que se pretenda fazer sobre eutanásia  inclui argumentos com alto grau de subjetividade. O caso BM possibilitou  uma  aparição da Bioética para a sociedade, modesta sem dúvida, mas que teve  o mérito de mostrar que ela é um forum adequado para reflexões  sobre complexidades envolvendo a terminalidade da vida e com pretensão de ajustar o foco em objetividades.

Há cerca de 200 países no mundo. Este número significa que 2,5% dos mesmos admitem o suicídio assistido. A Europa predomina entre os cinco. Holanda, Bélgica, Luxemburgo e Suíça  têm legislação e critérios. Nos EUA, ele pode ocorrer em  apenas alguns estados.

Este baixo percentual traz a curiosidade. Por que é que o caso BM teve receptividade em número muito maior de países? Será fruto apenas de emoção com algo que “está longe de nós”, de que não precisamos tomar uma posição de empatia além de palavras? É hipótese atraente. Passada a exposição pública-quebra voluntária do sigilo, um plebiscito teria mais chance de objetar a possibilidade da aceitação social. A tradição judaico-cristã influenciaria fortemente. Mas a movimentação conseguida embute, certamente, acenos de interesse pela autorização perto de si.

Poucas semans após a morte de BM, o suicídio assistido está sem uma cara. Pelo menos na mídia. Não obstante, não faltam pessoas aflitas  em processo nos cinco  países  ou dele cogitando  em muitos outros.

No Brasil, não parece haver nem um fundinho de discussão. O Código Penal é implacável. A eutanásia é um crime. A pena é de reclusão para quem induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou para quem prestar auxílio para que o faça. É o seu artigo 122. Esta heteronomia em defesa da vida subjuga, pois, qualquer tentativa de fundamentação pró-eutanásia com base no princípio da autonomia, na visão que ela não é intrinsicamente anti-ética, que o valor  religioso da sacralização da vida é questão de foro íntimo de cada um.

Brasileiros na terminalidade da vida pela doença irremediavelmente progressiva    podem ser eticamente assistidos pela ortotanásia, recebem cuidados paliativos, mas não podem solicitar amparo médico para a  aceleração abrupta do término da vida pelo suicídio assistido.  Se pedirem, num cenário que é de forte impacto social, cultural e religioso, não serão atendidos. Quem testemunha percebe quão extremas são as tensões presentes que clamam por alguma solução. Mas a não sobrevivência do paciente faz perder o poderio de argumentação na defesa de uma causa, a razão  construída  pelo que é  sentido na própria carne. Neste ponto, BM inovou. Seus vídeos globalizaram a comoção enquanto ela tinha forças e, concentrando na sua individualidade, pode abordar um postulado moral numa forma concreta, indicando que estava ciente que faria o suicídio assistido como um meio bom e não exatamente como um bem.  E que teve o vigor necessário para dirigir-se a um  local onde pudesse ter a  liberdade de escolha .

Garimpei na literatura uma série de aspectos favoráveis e desfavoráveis sobre a eutanásia. Espero que seja útil para o bioamigo interessado em ampliar suas bases de discussão.

1-Hipócrates escreveu em grego e nós juramos em outra raiz linguística na Formatura, sinal da pujança do texto: “… A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza à perda…”.  Nuremberg, em mais um idioma,  reafirmou-o.  O Juramento de Hipócrates não coube na Torre de Babel, felizmente.

2-Gregos e romanos praticavam a eutanásia. Cicuta era um agente do auto-envenenamento com forte efeito sobre o sistema nervoso.

3-Casper Querel foi um advogado que entrou para a História  no século XVII  porque escreveu o livro Não retire o travesseiro de quem está morrendo. O objetivo foi alertar sobre certas práticas de aceleração da morte que iam de encontro às leis de Deus e da Natureza.

4-Uma das práticas – razão do título-conselho do livro- era remover o travesseiro do doente. Percebeu-se que a posição completamente supina  prejudicava a ventilação pulmonar e, assim, acelerava a morte.

5-Outra prática era retirar o paciente do leito e colocá-lo no chão frio. Como na “conduta” anterior, pretendia-se uma “naturalidade” à morte. Qualquer pessoa poderia fazer o “ato caridoso”, ou seja, o comportamento não estava restrito a médicos.

6-No século XIX, houve proibição por escrito da eutanásia. Assim escreveu o médico Carl Friedrich Marx: “… das últimas coisas a se permitir, ou pela solicitação de outrém ou pelo próprio senso de misericórdia, terminar com a condição penosa do paciente pela aceleração proposital e deliberada da morte…”.

7-Nos EUA, o estado de Oregon legalizou a eutanásia em 1997 (“Death and Dignity Act”) e o estado de Massachusetts a rejeitou por 51% a 49%, em 2012.

8-Nos países que permitem a prática da eutanásia, há um percentual  de médicos que se recusa a praticá-la por razões éticas, morais e religiosas. À semelhança do que  ocorre com o aborto por mandado judicial  no Brasil.

9-É grande o universo de médicos que se opõem ao envolvimento da Medicina em administração de injeção letal para  condenados à pena de morte nos EUA.  Sabe-se  o quanto médicos distanciam-se de atividades profissionais com risco de impacto negativo na identidade moral.

10-O imperativo moral da Medicina “Não mate” é vigente por milênios.  Bem é tudo que serve à vida e mal, à morte. Neste contexto,   o médico não deve se afastar das conexões interpessoais de apoio a experiências  de transcender ao sofrimento, do amparo ao encontro de novos significados para a vida numa jornada transformadora, mesmo quando falta a integridade biológica. http://www.annfammed.org/content/3/3/255.full.pdf+html.  Não há dúvida que o médico é um ser pró-vida de seus pacientes, mas ele não pode esconder-se da morte e tem que conviver com a determinação que ninguém é sepultado sem a assinatura de um médico.

11-Há sugestões para que haja uma formação não médica para proceder  ao cumprimento do suicídio assistido conforme a lei estabelecida. O “profissional”   para “apertar o botão que desliga a vida” teria a denominação de tanatologista. Um carrasco desnecessário ou um coveiro necessário? A proposta traz várias interrogações sobre o treinamento. Noções de  fisiologia, fisiopatologia, farmacologia e comunicação seriam indispensáveis    http://bmb.oxfordjournals.org/content/52/2/317.long. Na eventualidade do suicídio assistido em ausência de assistência médica, fica a pergunta: Quem assina a declaração de óbito e sob que termos?

12-Sabe-se o quanto a semântica é essencial para dar um sentido de realidade. O bioamigo  venderá o  seu carro com mais facilidade se o anunciar como  semi-novo, pois  poucos se interessariam em comprar um carro semi-velho. Evidentemente, o carro seria o mesmo. Suicídio e eutanásia são termos que reduzem o suporte da população, enquanto que morte com dignidade  e ajuda para morrer são  denominações moralmente mais aceitáveis.

13-Simpatizantes da eutanásia argumentam que a sua legalização contribuirá para o aperfeiçoamento dos cuidados paliativos. Argumentam que doenças terminais  não são todas iguais quanto à evolução final.  E assim, dependendo das circunstâncias, quando o paciente sabe que está autorizado a qualquer momento praticar o suicídio assistido  e que está obrigado a participar de um processo de preparação, ficaria mais seguro do controle da situação o que inibiria decisões intempestivas, como  a de um suicídio não assistido. Tudo se passaria como se o direito ao suicídio assistido desse plenitude à vida ainda possível. O suicídio assistido seria, pois, um momento no decorrer dos cuidados paliativos. Neste contexto, estima-se em 30% o percentual de pacientes que embora autorizados não o praticam.

14-Dados obtidos direcionam para considerar falácia o argumento que é essencial o médico estar ao lado do paciente na eutanásia porque o  bem pelo acompanhamento prolongado. De fato,  identificou-se uma média baixa de 12 semanas para o período de relação médico-paciente pré-suicídio assistido.  Ademais, a presença de médicos no Oregon caiu de 50% para 9% no decorrer do século XXI.
http://public.health.oregon.gov/ProviderPartnerResources/EvaluationResearch/DeathwithDignityAct/Documents/year14.pdf

15- Caso a eutanásia  seja considerado um tratamento médico, que é justamente o contrário como a maioria manifesta-se na literatura, então seria obrigação do médico apresentá-la como opção ao paciente na terminalidade da vida e esclarecê-lo sobre prós e contras, o que traz um forte viés ético.  A diretiva antecipada de vontade poderia incluir a eutanásia da mesma maneira.

16-Há flutuações expressivas da vontade de viver, mesmo quando a morte está iminente. http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0140673699800117. Por isso, o suicídio assistido deve ser entendido como um processo a ser cumprido e que admite momentos íntimos de revogações e de renovações.  O fato de necessitar estar consciente para tomar o medicamento final  por si traz hesitações, conflitos entre o momento bom que se passa e a perspectiva sombria do amanhã. Pelo que se pode observar nas notícias, BM vivenciou este aspecto, tendo desmarcado o que estava combinado por não sentir que estava na hora, mas pouco tempo depois  cumpriu o seu desígnio. Arrepiante!

17-Sofrimento insuportável, perda da dignidade e exaustão real são considerados sentimentos reais a favor do suicídio assistido.

18-Sentir-se um peso, cansado de viver e outras expressões de depressão são entendidas como palavras apenas e não sustentam solicitações de suicídio assistido onde ele está legalizado.

19-Há 6 critérios essenciais para os médicos da Holanda, a respeito do suicídio assistido:
a) convicção de desejo livre pelo paciente;

b)convicção de sofrimento insuportável do paciente;

c) esclarecimentos para o paciente da situação e das perspectivas;

d) ausência de alternativas razoáveis para o paciente;

e) ouvir a opinião de outro colega;

f) assistir ao final com dedicação.

20-A preocupação com influências negativas e comportamentos indevidos  dá destaque ao quinteto:  ausência de dolo, paciente capaz, diagnóstico confirmado, acumular a droga mês a mês (3 meses, habitualmente) e estar consciente no momento da tomada do medicamento pois a ingestão é por si próprio.

Pacientes  brasileiros exigem  todos os recursos disponíveis, pacientes brasileiros  capazes recusam tratamentos,  em mesma circunstância clínica. Pode-se dizer que aqueles devem receber  o que for necessário, pois têm direito à vida.  Mas, os que dispensam as chances de benefícios não têm  direito à morte, pois  ele inexiste, muito embora possam ter  acelerado na direção da mesma.

Médicos brasileiros estão eticamente autorizados a interromper ou não iniciar  tratamentos que sejam julgados fúteis pelo avançado da doença, em nome da dignidade do paciente. Eles assistem o não sofrimento na progressão do final de vida e supervisionam com humanismo  uma decisão  que foi difícil  até quando constatam que a morte natural aconteceu.

Médicos brasileiros não têm intenção de provocar a morte, mas são instruídos sobre as limitações da Medicina que a provocam. Tradicionalmente, eles não podem aceitar uma última manifestação de confiança do paciente se ela for de ajudá-lo a ingerir  comprimidos  em quantidade  exagerada para logo morrer. Mas, eles podem e devem ministrar opióides desde que em doses regulamentadas para controlar delírios, exarcebações de dor e dispnéia nas horas que antecedem a morte. http://www.nhu.ufms.br/Bioetica/Textos/Morte%20e%20o%20Morrer/MANUAL%20DE%20CUIDADOS%20PALIATIVOS.pdf

Mas será que médicos brasileiros não se dispõem a apoiar o paciente no suicídio  assistido porque seria um crime e ponto final ou porque têm razões de foro íntimo, por não considerar ato médico, mesmo se fosse permitido? Não é improvável que um percentual deles viesse a atuar de modo análogo ao que fazem  colegas  holandeses ou belgas, por exemplo.

Portanto, é lícito supor a possibilidade do encontro entre pacientes brasileiros solicitando  a ajuda para morrer e  médicos brasileiros concordantes e dispostos a cooperar, desde que o direito a assim morrer ganhar aval ético e legal.

A Bioética trabalha para que abusos do passado em vulneráveis não se repitam. A eutanásia pode ser uma porta para a entrada de abusos, indignidades, sem dúvida. Mas também pode ser uma porta de saída para a dignidade.

Na falta da experiência, continuaremos na abstração, teorizando prós e contras gerados em outros países. Mas o que pode valer para uma cultura pode não valer para outra e o Brasil como é multicultural pode ter nichos de afinidades com aqueles.

A Bioética sabe disto e mais, acredita no bom uso –sem fechar o olho para o abuso-  e assim vê com bons olhos a liberdade cívica para  discutir  conveniências e inconveniências de transformações sociais, que no caso da eutanásia tem impacto sobre a prática médica.

 

 

 

 

 

 

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