Mais uma manchete negativa para a classe médica. Um médico quem sabe sentindo-se agredido em seus ouvidos por erros de português de um paciente tomou uma atitude que soou como um revide hostil. Um comportamento que foi entendido pelo familiar do paciente como não condizente com o conjunto de regras que de alguma forma se coloca em oposição ao ser médico e com referência em valores, e, assim, provoca juízos de certo e de errado. Um caso de equívoco da moralidade. Transgressão de uma ordenação esperada na relação médico-paciente. Há um quê do solene histórico no cotidiano de um dos mais antigos profissionais, que o tempo parece não pretender diluir nas atuais formas de trabalho médico.
O médico conectou a realidade da beira do leito a grupos virtuais dando instantaneidade a uma ocorrência que estava longe de se enquadrar numa missão social. Quem com rede social fere, com rede social será pego, ela tornou-se um instrumento de denúncia. O familiar respondeu na rede social e, fundamentando-nos no noticiário, um silêncio do médico ao questionamento elevou a voz da indignação, enfim alcançando a imprensa. O benefício da consulta transformou-se num malefício pós-consulta como uma mensagem de deboche.
Talvez o médico em questão não tenha infringido “ao pé da letra” nenhum artigo do Código de Ética Médica vigente. Diagnóstico e tratamento podem ter sido realizados corretamente e sob consentimento. Aparentemente, não houve por parte do médico uma quebra formal do sigilo profissional, o anonimato foi preservado. Aliás, qualquer eventual pena cabível já foi aplicada, pode-se imaginar o quanto o médico não deve estar abalado com a repercussão do considerado equivalência a abuso de poder, revelação do seu nome, mesmo após ter pedido desculpas. Há uma pedagogia a ser recolhida.
A vida corrida com barreiras da própria condição humana identifica comportamentos que se sabe como começam e ignora-se como terminam. Alguém já disse que quando não se sabe ficar em silêncio pela simples falta de razão para falar, não saberá como se expressar. O adjetivo engraçado distanciou-se do significado da sua forma substantivada engraçadinho. Mesmo fato pode ser bem apreciado como engraçado e pode fulminar quem conta como um desagradável rótulo de engraçadinho. Inimizades acontecem a reboque de perco o amigo mas não perco a piada. Para refrear a vontade, contribui pensar nas girafas. Elas são mudas. Pode significar um recado da natureza para inconveniências do alto-falante. Engraçado ou engraçadinho?
Tem razão André Comte-Sponville (nascido em 1952) quando nos ensina que a ironia é uma arma, um riso que zomba, que se volta contra o eu e permanece exterior e nefasto, ou seja ironia não é uma brincadeira, ela fere e é humilhante, ao contrário do humor que cura, liberta e é humilde. Há o uso de uma linguagem de oposição depreciativa. No caso da reportagem, motivado pelas lacunas de conhecimento do idioma pátrio – que não é doença catalogada no CID, portanto longe do interesse da Medicina – de um paciente que certamente não procurou o hospital pelo desejo de ter aulas de português. Erros de português podem não prejudicar a eficiência da comunicação, o médico por exemplo pode decodificar, entretanto, assim como não deve ser elogiado, não deve ser repetido com sarcasmo.
O ocorrido alerta para o uso das redes sociais, a prática da exposição sem um intuito nobre, com a superposição de cidadão – quem postou- e de médico- quem recolheu os dados para o conteúdo da postagem. Palavras são janelas do interior e o imediatismo do fato consulta-postagem contribuiu para apor o rótulo de uma zombaria, a consulta realizada estava ainda “quente”. Se esfriasse, se o exatamente dito fosse inserido num livro de curiosidades do ambulatório pelo mesmo médico, agora um autor com liberdade de expressão, certamente não determinaria a manchete negativa. Seria classificado de humor. Aliás, no meu livro Memórias d´um esteto em colaboração com o farmacêutico George Washington Bezerra da Cunha (1945-2015), há um capítulo que reúne uma coleção de palavras distorcidas ditas, de fato, por pacientes – rauxis está lá. A atemporalidade distanciou qualquer reconhecimento de individualidades e compôs tão-somente um diálogo bem humorado entre o corretor de seguros do médico aguardando-o sentado na sua cadeira e o paciente inadvertidamente chamado.
A reportagem http://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2016/07/medico-debocha-de-paciente-na-internet-nao-existe-peleumonia.html acrescenta que funcionárias do hospital foram afastadas porque participaram da postagem acrescentando algumas “pérolas”. Novamente, entendo que é uma questão de timing. Se assim fizeram em pleno horário de trabalho, qualquer postagem seria passível de recriminação por desvio de atenção às obrigações. Numa outra circunstância, fora do hospital, caberia interpretação menos rigorosa -uma advertência bem esclarecida-, por mais que se compreenda que o gestor deseja preservar o ambiente de qualquer ameaça de afastamento de usuários receosos de serem alvo de um juízo moral.
Por fim, vale a pena refletir sobre o que diz Arun Ghandi (nascido em 1934), neto de Mahatma Ghandi, no prefácio de Comunicação não-violenta do psicólogo Marshall B. Rosenberg (1934-2015), livro que nos alerta que ficamos perigosos quando não temos consciência de nossa responsabilidade por nossos comportamentos, pensamentos e sentimentos (Quadro).
O médico em questão declarou que não teve intenção de ofender o paciente. Merece todo o crédito. É motivo, todavia, para recordar que a ética da responsabilidade prega responder não somente pelas intenções ou princípios, mas também pelas consequências previsíveis do ato.
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