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18-Direito à autonomia nem sempre é exercido pelo paciente

UY é um homem de 48 anos. Ele realizou uma viagem aérea e acatou todas as recomendações que já sabia e as que veio a conhecer  desde o check-in até a restituição da bagagem. Quando retornou,  UY  escolheu  um restaurante para almoçar, escolheu a mesa, escolheu o prato entre várias opções do menu, escolheu a forma de pagamento.. No dia seguinte, UY  apresentou um quadro de dor abdominal rapidamente resolvido em Pronto Socorro com o uso de anti-espasmódico.  Dois meses depois, realizou  uma ultrassonografia que identificou a presença de cálculos na sua vesícula biliar. O paciente não deu consentimento para o médico realizar a recomendação de uma colecistectomia. Argumentou que a dor não se repetira, que achava que tinha tido uma crise de gases (sic) e que, portanto, aqueles cálculos biliares eram inocentes, o médico exagerava relacionando a dor que tivera ao achado diagnóstico. Oito meses após, UY apresentou colecistite aguda e coledolitíase associada. Ele resistiu num primeiro momento à realização do tratamento cirúrgico, não o autorizou e recebeu antibioticoterapia. Dois dias depois, quando se percebeu evidentemente ictérico e com vômitos repetidos, aceitou a operação e cobrou rapidez em meio às observações da esposa que nunca concordara com a ”desobediência às ordens médicas”, um absurdo que esperava que agora aprendesse.

Leis são normas estabelecidas por direito que todo cidadão precisa cumprir, não podendo se escusar de se submeter alegando desconhecimento. Enquadra-se na heteronomia, a condição da pessoa receber uma orientação que vem do seu exterior.

Recomendações médicas são orientações que todo cidadão tem direito de receber, podendo não se submeter às mesmas se assim não desejar. O consentimento ou não pelo paciente enquadra-se na autonomia, a condição de liberdade de participar ativamente de decisões, no caso sobre a própria saúde.

UY praticara a heteronomia seguindo à risca as normas da aviação como benefício e segurança normatizados, tendo funcionários atentos ao cumprimento e a autonomia escolhendo a refeição de acordo com o seu desejo e gosto  e tendo um garçom e um cozinheiro para o atender sem contraposição.

Na beira do leito, a heteronomia é chamada de paternalismo. O agente é o médico que  possui conhecimentos e habilidades da Medicina para eliminar, controlar ou prevenir os impactos da doença. É o que dele se espera.

É fato que a sociedade, de modo geral, tem sido socializada para o paternalismo. É consagrado que o cidadão se torna apto a ser capaz de direito partindo da criança/adolescente  que  recebe um comportamento impositivo dos pais,  um costume de  obediência à autoridade  do médico, uma captação apenas das concordâncias dos adultos com os médicos, além de uma comunicação com ênfase no benefício “sempre verídico” sobre assuntos de Medicina na mídia.  Promove-se assim, o é para fazer, desconsiderando cautelas.

Acontece que acontecimentos históricos do século XX enfatizaram a vulnerabilidade da pessoa e precipitaram o entendimento sobre a necessidade de salvaguardas ao mau uso da Medicina. Conscientizou-se que o cidadão capaz  tem o direito de manifestar seus valores e suas preferências, não exatamente como negação da Medicina ou desrespeito ao médico, mas como expressão de dignidade. O que traz responsabilidades. UY as teve quando não consentiu com a colecistectomia “preventiva”, uma prevenção de mácula no zelo do médico.

Convivem na beira do leito extremos tanto de paternalismo do médico -representado pela emergência em função do iminente risco de morte-, quanto de  autonomia do paciente -representado pela alta a pedido, ou seja, uma liberação na contramão da recomendação médica. Contudo, esta convivência tem sido cada vez mais diluída por gamas intermediárias, qualificáveis como relativo, quer se entenda como paternalismo relativo ou como autonomia relativa.

É realidade que acentua o valor da Bioética da beira do leito para a interpretação em conjunto de dois enunciados do Código de Ética Médica, que se por um lado são isoladamente desejáveis de cumprimento, por outro, carregam o potencial de conflitos entre si. Eles correspondem aos artigos 31 e 32: http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=20660:codigo-de-etica-medica-res-19312009-capitulo-v-relacao-com-pacientes-e-familiares&catid=9:codigo-de-etica-medica-atual&Itemid=122

É vedado ao médico:

Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.

Art. 32. Deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente.

É interesse da Bioética da Beira do leito que as boas práticas contemplem o teor de ambos artigos e contornem as possíveis contradições por meio do diálogo que promova a tolerância, o desenvolvimento do esclarecimento e o convencimento sem coerção.

A Bioética da Beira do leito endossa que a autonomia do paciente é capital moral do paciente. Contudo, não pode deixar de analisar o porquê dos entendimentos paternalistas de que a autonomia radical é “hiper-racionalismo”enfraquecedor  dos cuidados competentes no interesse do paciente. Uma preocupação é o quanto existiria de  imaginações  de plena liberdade,  clareza de  esclarecimento e  assunção da responsabilidade numa tomada de decisão pelo paciente em contraposição parcial ou total à recomendação do médico.

Ponto prático observado pela Bioética da Beira do leito é que a assimetria de poder &conhecimento pode causar uma falsa impressão de aplicação da autonomia. Duas situações merecem citação.

A primeira diz respeito ao uso de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido na assistência. Um ritual essencialmente burocrático com ênfase mais na assinatura de um papel do que na disposição ao diálogo que tira dúvidas,  poderá – assim recomendam os advogados- ser útil num eventual conflito futuro, mas será de pouca utilidade para o presente. A confiança de que o médico não faria um malefício, portanto “assinemos mesmo  com incertezas” não é expressão de legítima participação ativa.

A segunda chama a atenção para a diferença entre aceitação-permissão e  escolha-consentimento. A primeira dupla aceitação-permissão corresponde a um paternalismo “educado”, onde a recomendação que o médico propõe é acatada passivamente sem nenhuma intenção pelo paciente de fazer parte na tomada de decisão. É como se obedecesse a uma lei, em concordância porque confiante na legitimidade da mesma. Há, habitualmente,  a influência do grau de segurança no sistema e de uma circunstância de real sofrimento. Esta última sustentou a aceitação-permissão de UY que ele soou como uma exigência, talvez um correspondente do pensamento dele para o  iminente risco de morte do Código de Ética Médica.  A segunda dupla escolha-consentimento  representa  real autonomia, onde  uma ponderação de prós e contras com ampla liberdade circunstancial pelo paciente, idealmente assistida pelo médico, tem a opção da  recusa.

Em suma, é da ética do médico dispor-se a reconhecer o direito de autonomia do paciente, mas ele não é mandatório para o paciente, ou seja, nem sempre este exercerá o  direito. Por sua vez, o médico jamais deixará de intencionar o benefício e a segurança como fundamentos para os cuidados competentes no interesse do paciente, sempre autêntico e  isento de conveniências apenas para a equipe profissional. É a contribuição da Bioética da Beira do leito para a conciliação dos artigos 31 e 32 do Código de Ética Médica e que ficou evidente no caso de UY.

 

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