Pela anamnese, o médico ouve o que o paciente está: a) observando em si próprio; b) sentindo a respeito; c) expressando suas necessidades; d) pedindo.
Os dois primeiros ítens são comuns ao paternalismo e à autonomia. Eles dão a medida do que está acontecendo com o paciente e provocam uma compreensão intelectual fundamentada pela Medicina. Nesta parte, o médico está integrando as palavras ouvidas com o seu conhecimento profissional, mas são dois acontecimentos distintos- ouvir e integrar.
São duas pessoas, evidentemente, exercendo dois papéis distintos, cara a cara, predispostas à interlocução e ao desenvolvimento do atendimento e para que haja mais empatia do que solidariedade é essencial que o médico dê tempo para a manifestação do paciente e se mostre conectado diretamente com a palavra do paciente, por mais janelas intelectuais que possam estar abertas em sua mente.
A experiência profissional contribui para que apenas observação do que está sendo dito pelo paciente mescle-se à audição pelo intelecto- já processando a informação-, sem prejuízo da qualidade de presença do médico. Ou seja, o paciente ver que o médico está ouvindo e com atenção. Anotar durante a vocalização do paciente, atender ao telefone, interromper dando a sensação de “pule esta parte” não são bem apreciadas, habitualmente, pelo paciente ansioso por “contar tudo ao médico”- é terapêutico, inclusive.
Sabemos o quanto o mundo real perturba esta idealidade, temos consciência que não temos o tempo, o tempo é que nos tem, o sistema de saúde tem suas peculiaridades, etc…etc… Mas devemos evitar enxergar o paciente como um transgressor do tempo disponível. Nenhum médico começa um atendimento ambulatorial, por exemplo, expondo ao paciente o número de minutos que ele terá para cada fase da consulta. Muito menos o paciente está treinado para ser o bastante sintético e o máximo objetivo.
O perigo do reducionismo quanto ao que o paciente declara do que observa de si próprio e ao que sente a respeito é o direcionamento para o excesso do objetivo por exames, prejudicando o raciocínio clínico. A Bioética da Beira do leito dá especial ênfase aos alertas sobre estes desvios da comunicação paciente-médico, destacando a responsabilidade do médico com a detalhada captação do motivo clínico que traz o paciente à consulta e do tipo de benefício que se pretende sucesso.
Já os dois últimos ítens- expressando suas necessidades e pedindo- são distintamente apreciadas à luz do paternalismo e da autonomia.
É importante reforçar que observar é uma coisa, avaliar é outra coisa. Observar o que o paciente está dizendo, do que ele está se queixando, como os amles estão influindo na sua qualidade de vida é diferente de avaliar que o paciente necessita de tal e qual recurso da Medicina. São dois momentos do processo clínico. Por mais que o médico possa estar correto no enquadramento técnico-científico, antes da tomada de decisão, ele deve analisar do que o paciente acha que necessita e o que ele está pedindo.
O paciente pode se ver necessitado e pedindo por tudo o que o médico já conjectura ser o benefício para o paciente, mas, nem sempre. A superposição pode ser parcial ou mesmo muito restrita.
Aí entra a arte médica, tendo a ciência de um lado e a relação médico-paciente de outro lado. A sensibilidade para captar os desejos do paciente e a percepção para a conveniência de esclarecimentos sobre o que o paciente não está enxergando como sua necessidade ou não pretende obter do médico. Há o entendimento atual que o médico não pode deixar de informar o paciente sobre vários aspectos de acordo com uma seleção do próprio médico: “…Vai que amanhã o paciente diga que não soube por mim…”. Há controvérsias sobre as linhas de corte desta manifestação professoral do médico.
Cada médico deve ter o seu comportamento a respeito desta “sanfona” da informação ajustada ao não ao desejo até então expresso pelo paciente.. Tanto na verbalização, quanto na solicitação de exames em busca de achados. Desta maneira, o médico exercerá, por sua autonomia um paternalismo forte ou um paternalismo fraco ou atenderá à autonomia do paciente.
Neste contexto, em que não há iminência de morte -resslav eticamente importante-, o paternalismo forte significa a possibilidade de o médico ir muito além do que o paciente deseja, acha que necessita e pede. Solicitar exames-triagem passando por cima de recomendações de diretrizes, por exemplo, pode ser considerada uma forma de exagero. Ou, pelo contrário, atuar em “escravidão” a diretrizes, poderia ser também. Boa intenção? O paciente não merece o que seria útil e eficaz para ele? Certamente que sim. Mas será que este pensamento médico está em sintonia com o desejo do paciente, com suas preferências? Vale exercer um poder para a submissão? E se o paciente só pretende assegurar-se que o que está sentindo não “é do coração”? Até que ponto cabe aprofundar-se no diagnóstico diferencial? Usar de argumentos coercitivos que violentem moralmente o paciente- pode ser uma doença grave- encaixa-se no paternalismo forte, eticamente reprovável. A Residência Médica, no afã do aprendizado, provoca certos condicionamentos autoritários que seria desejável que fossem eliminados da beira do leito.
Se o bioamigo está pensando que deveria se aprofundar no diagnóstico diferencial, perfeito! Uma atitude que pode ser defensável no “tudo a seu alcance” do Codigo de Ética Médica. Mas, aí precisamos mudar de capítulo. Fechamos o paternalismo forte e abrimos o paternalismo fraco. Este acontece quando o paciente não se mostra disposto a consentir na recomendação diagnóstica e/ou terapêutica do médico e este tenta o convencimento, idealmente por meio de evidências validadas. Mas, a última palavra será do paciente, autêntica manifestação de sua vontade, reforço da original ou modificação influenciada pelo médico. Liberdade e responsabilidade!
E a autonomia, como fica? Pois é, a autonomia do paciente é antítese do paternalismo forte, mas pode conviver com o paternalismo fraco. Muitas vezes, o médico já entende o quantum o paciente pretende e já respeita esta autonomia “na fonte”, restringindo a conduta ao que já sabe que o paciente julga necessário e pede, implica, pois, num consentimento tácito. Outras vezes, o médico aplica o paternalismo fraco, mas, como já referido, como uma fase auto-limitada no processo de respeito à autonomia do paciente, que, inclusive, representa um respeito do profissional à própria autonomia de ser médico. Mas sem a tirania do verdadeiro, da classe I das diretrizes e da ideia de processo caso não faça a aplicação não consentida! Valor do desejo do paciente e verdade de um conhecimento do médico são disposições distintas em tomadas de decisão.
Observar, no sentido tanto de olhar a circunstância clínica subjetiva e objetivamente, quanto no sentido de cuidar das recomendações advindas pertinentes, sem misturar com avaliar como comportamento “impróprio” do paciente de acordo com a “Medicina daquele médico” é uma expressão de tolerância justificável à beira do leito. O respeito à opinião do paciente que foi devidamente esclarecida em seus aspectos de benefício e de malefício à saúde pelo médico, embora possa ser sentida como frustração à prudência ou ao zelo, não deve ser interpretada como imprudência ou como negligência. Salvo em iminente risco de morte e que não se enquadre em ortotanásia.