Uma pessoa é ao mesmo tempo ligada e independente de outras. Ela se relaciona ou de modo simbólico -agregador ou diabólico- desintegrador. Na relação médico-paciente, a capacidade humana da linguagem deve, não somente privilegiar o bom uso das palavras, como também proporcionar compreensão mútua- uma palavra, uma resposta, ordenação simbólica. Já uma linha divisória entre médico e paciente é (não) comunicação diabólica.
A tradição da relação médico-paciente, calcada na confiança sobre o discernimento do bem e do mal, foi construída tijolo a tijolo de transcrição pelo médico no prontuário da palavra emitida e da ouvida do paciente. A prática subentende a realização do diálogo esclarecedor e a ausência da coerção. Suficiente sob a óptica da Ética. Bons e maus resultados enquadram-se na compreensão que ficou, mas, fundamentalmente na relação de confiança. Uma documentação de fé pública, na dúvida que se prove que o médico anotou mentira e não que o médico prove que é verdade o que escreveu.
Já se disse que o poder de comunicar pensamentos e conhecimentos gera palavras ditas e ouvidas que funcionam qual ondulações de sentido que vão se sucedendo como acontece com a pedra atirada na água. Efeitos progressivos transmitem vigor às revelações simbólicas dos conceitos da Medicina e da experiência pessoal na relação médico-paciente. Contudo, eles podem ficar contidos por um diabólico comportamento causado pela tecnicidade. De fato, o saber técnico tende a reduzir o interesse pelo compartilhamento da informação e pelo esclarecimento interpessoal.
Pacientes não são papéis em branco a serem preenchidos sem interação humana. Hipócrates percebeu quando retirou a Medicina do “poder” dos deuses. Não obstante, há quem entenda, atualmente, que o exercício do princípio da autonomia inclui substituir o cara-a cara médico-paciente por um papel preenchido com informações de interesse. No lugar do diálogo que individualiza a interlocução, o monólogo que presume nivelamento cognitivo dos leitores. Aliás, dois monólogos justapostos, um que supõe estar explicando e outro que restringe suas dúvidas num solilóquio.
O que interessa exatamente no esclarecimento do paciente por escrito na assistência? Uma resposta é que o paciente assim passaria a conhecer melhor futuras relações com a Medicina acerca de benefícios, adversidades e prognóstico. E, em decorrência, mais bem situar-se na participação- ou não. Não há como refutar o pensamento, mas, também, não há como comprovar se é o que ocorre com frequência. Sabe-se o quanto esclarecimentos antecipados por escrito, principalmente, em momentos emocionais, tendem a carecer da atenção na leitura.
Há, contudo, outra intenção que se mostra crescente: a assinatura do paciente. O que seria uma prova que houve a compreensão. Preocupa o quanto esta afirmação de concordância representa aspiração da Medicina acolhedora ou desejo da Medicina defensiva. De ambos, alguns se apressarão a dizer.
O risco da burocratização da Autonomia, intranquilidade da Bioética da Beira do leito, mostra-se, por exemplo, no aconselhamento interdisciplinar que se ouve: “… O “recibo” de ter sido esclarecido assinado pelo paciente tem importância perante o juiz…”. Olho em que processo? No terapêutico respeitoso a valores e a preferências do paciente ou no judicial que se teme? Em ambos, novamente, alguns se apressarão a dizer, apreensivos com a visão de erro profissional, interpretação maliciosa e até de demonstração da qualidade do transmitido ao paciente. Desta maneira, o que se entende ser essencial para o voluntário de pesquisa migra para a beira do leito. O problema é o quanto é bem-vinda. Temática complexa.
A modernidade da Medicina deste século XXI inclui expressões como autonomia, paternalismo fraco, termo de consentimento livre, esclarecido, revogável e renovável, diretiva antecipada de vontade (testamento vital), responsável indicado, responsável legal. Elas carregam simbolismos que se desenvolveram com a pretensão de juntar os muitos dialetos de cada partícipe num idioma da beira do leito que facilite aplainar desníveis de conhecimento técnico-científico e partilhar humanidades, em outras palavras, reduzir lacunas comprometedoras da confiança.
O princípio da autonomia pressupõe a intenção do respeito ao outro. Ele precisa da ferramenta chamada consentimento (positivo ou negativo). O respeito exige a liberdade da manifestação pró ou contra. Ser livre para tal é inócuo se não houver a compreensão da aplicação técnico-científica pretendida, seu benefício, sua segurança e seu prognóstico. Como novas circunstâncias ocorrerão em decorrência dos procedimentos, sem a certeza sobre quais e de que modo, a liberdade continua necessária para a ocasião em que elas se tornam realidades. Perante as mesmas, no decurso de um processo diagnóstico e/ou terapêutico, pode acontecer tanto uma mudança de opinião que revoga o consentimento dado, quanto uma reafirmação de consentimento, várias vezes, inclusive. Há que conjecturar sobre a perda da capacidade para exercer a autonomia. A incapacidade de participar do consentimento pode ser compensada pelo documento chamado Diretiva Antecipada de Vontade (Testamento vital), onde o paciente expressa, enquanto capaz, o que poderá e o que não poderá ser aplicado. O paciente incapaz pode, também, ser substituído por um representante por ele indicado ou legalmente constituído, que necessita dos esclarecimentos do médico, mas não é exatamente livre, pois deve decidir de modo sensível ao paciente, presumindo o comportamento deste, caso estivesse capaz.
Linguagem falada, linguagem escrita ou ambas? Há momentos adequados para cada modalidade. Torna-se fundamental, assim, analisar como cada componente da comunicação seria mais útil. O paternalismo fraco, por exemplo, é útil “ao vivo”, pois corresponde a um passo-a-passo para o convencimento. Já a Diretiva Antecipada de Vontade deve ser “gravada” para que tenha proveito.
Quem tem vivência com o aprendizado dos jovens médicos sente dificuldade em aprovar documentos de esclarecimento ao paciente por escrito para consentimento imediato. Ele está ,onge de se comportar como um roteiro. Há provoca o desvio da habilidosa relação boca-ouvido para uma automática relação de mãos que entregam, recebem, assinam, devolvem, arquivam e desarquivam “para o juiz”, com pouquíssima, se tanto, participação do olhar que acolhe e do que lê. Prejudica-se o treinamento da comunicação na beira do leito, deteriora-se o valor da relação médico-paciente, patrimônio inalienável.
A comunicação toma a feição de um comunicado. A Bioética da Beira do leito desaprova. Soa desagregador. Diabólico!