Dr. Marco Aurélio Scarpinella Bueno
Na tentativa de quebrar o gelo diante de alguma notícia pouco auspiciosa a ter que ser compartilhada, pergunto aos pacientes se eles conhecem o livro Poliana, da escritora norte-americana Eleanor Hodgman Porter (1868-1920). Pois bem. Poliana é uma menina que adora fazer o jogo do contente, procurando o lado bom em qualquer situação.
Será possível fazer o jogo do contente nestes dias? Com quase 120000 mortes pela pandemia da COVID-19 no Brasil será possível achar algo de bom proveniente deste implacável SARS-CoV-2?
Apesar dos psicólogos afirmarem que a mente humana tem uma tendência a focar no otimismo, meu sonho de consumo é ser estoico tal qual o filósofo grego Epicteto (50-135): “Não peça que as coisas aconteçam como você deseja. Deseje que elas aconteçam como acontecem, e sua vida transcorrerá suavemente”. Felicidade não é ter nossos desejos assegurados, e liberdade não é fazer o que queremos (Samuelson S A Filosofia na Vida Cotidiana. Zahar 271 pp, 2014).
Como um vírus originado na China o SARS-Cov-2 não nos poupa de um velho provérbio originado nas terras de Confúcio (551ac-479ac):“Espere o melhor, prepare-se para o pior, aceite o que vier”.
Do ponto de vista da bioética creio que o principal legado da pandemia da COVID-19 será a necessidade de desenvolvermos uma bioética do social. Aristóteles (385ac-323ac) nos ensinou que para sermos virtuosos devemos pensar mais na felicidade dos outros. A pandemia nos mostra que é essencial pensarmos no bem comum. Há sempre alguém mais vulnerável.
É importante que aqueles que militem de alguma forma na bioética mostrem à sociedade que tudo nesta pandemia da COVID-19 está travestido de bioética. Parafraseando o Prof. Max Grinberg, defensor da bioética da beira do leito, vamos perseguir a bioética do dia-a-dia.
Por trás da dicotomia beneficência/não maleficência estão as diversas campanhas publicitárias orientando a importância de se usar máscara e conclamando que seu uso é um ato de amor.
Com a reabertura da economia começam a surgir nos noticiários manchetes do tipo “A empresa pode exigir que eu faça o teste da COVID-19?”. Tema caro à autonomia. E melhor ainda, que permite discutir os limites da autonomia em um momento de emergência em saúde pública de importância nacional.
E o que falar das notícias sobre falta de anestésicos e relaxantes musculares usados para sedação de pacientes em ventilação mecânica? Trazer esta discussão à tona significa apresentar à sociedade o princípio da alocação de recursos. E lembrar que por serem sempre finitos, precisam ser bem destinados.
E como conciliar autonomia e competência dos voluntários para os estudos de desafio para vacinas com os riscos calculados de mortalidade em uma doença sem tratamento específico como a COVID-19? Mesmo que sejam éticos, tais estudos ainda geram muitas divergências entre os estudiosos do assunto.
No país com Ministro da Saúde interino para enfrentar a maior crise sanitária de sua história, e onde o presidente da República faz apologia ao uso da hidroxicloroquina baseado em achismos, nada mais interessante que um consórcio de cientistas brasileiros comprovarem que o uso de hidroxicloroquina (associada ou não à azitromicina) não tem eficácia no tratamento de pacientes internados com quadros leves e moderados de COVID-19 (A.B. Cavalcanti, F.G. Zampieri, R.G. Rosa, L.C.P. et al. Hydroxychloroquine with or without Azithromycin in Mild-to-Moderate Covid-19 N Engl J Med, 2020:July 23, 2020. DOI: 10.1056/NEJMoa2019014).
Esta falta de diálogo é a antítese da bioética.
É chover no molhado, mas educação, ciência e saúde são essenciais para que uma sociedade prospere. E sob o guarda-chuva do “viver em sociedade” deve haver lugar para a transparência, como defende o filósofo sul-coreano Byung Chul-Han, para quem a sociedade deveria estar baseada na honestidade e confiança. Nunca é tarde para lembrar que transparência gera confiança, fundamental na divulgação de quaisquer informações.
Desculpe Epicteto, mas está difícil achar alguém cuja vida esteja transcorrendo suavemente nestes dias. Mas não nos deixemos esmorecer e busquemos a Poliana dentro de nós. Tendo isto em mente foi bonita a imagem projetada no Cristo Redentor em 1º de julho de 2020 que dizia: “Não existe ninguém de quem alguém não sentirá falta”.
Esperemos que a solidariedade seja um legado positivo desta pandemia!
Uma resposta
Excelente artigo, continua muito atual, agora com mais de 500000 mortes pelo COVID-19 e sem dúvida um assunto diretamente ligado à Bioetica. Parabéns ao Professor Max pela versatilidade de temas.