O médico carrega consigo e compartilha com o prontuário. São muitas informações sobre pacientes. Elas se formam sob diversas expressões.
É a idade não comumente divulgada, são o estado civil e a profissão nem sempre afirmados a conhecidos, é um hábito de vida não sabido por pessoa próxima. E, evidentemente, dados e fatos relacionados à Saúde, incluindo diagnósticos, necessidades terapêuticas e perspectivas de prognóstico. Inclui limitações de ordem cognitiva desapercebidas no cotidiano das relações sociais.
Há um poder neste conhecimento. Hipócrates o reconheceu e, os médicos, seus herdeiros éticos, honram o “Pai da Medicina”, restringindo-o para as necessidades assistenciais, de ensino e de pesquisa nos cuidados com a saúde. E assim deve manter-se preservado como fundamento da relação médico-paciente. É resguardo da vulnerabilidade do paciente exposta pela necessidade de atenção do médico.
Qualquer revelação indevida pelo médico tem o potencial de provocar constrangimentos e prejuízos vários, como afetivos, trabalhistas e econômicos para o paciente. O sigilo médico é uma modalidade de não maleficência.
Foquei a individualidade. Há a sociedade como um todo. O médico relaciona-se com ambas. Ele movimenta-se priorizando o foco para uma delas, mais comumente na questão do sigilo para o individual. Armadilhas visando à quebra do sigilo do paciente nunca faltaram no caminho dos médicos. Pela curiosidade humana e por má-fé desumana, especialmente. É essencial reconhecê-las no entorno profissional. É fundamental manter a firmeza ética em toda atitude profissional. Destaque para os labirintos do exercício da comunicação.
Já presenciei jovens médicos dando explicações sobre a situação clínica de pacientes a pessoas sabe lá quem poderiam ser. Eles estavam animados pelo contentamento com o desempenho profissional florescente. Não se apercebiam que alguém estar próximo ao paciente não significava ter tido autorização para conhecer informações sobre o mesmo. Quantas visitas no quarto do paciente ouvem o que talvez não devessem, na óptica do paciente, que é o “dono” da decisão sobre quem pode ser receptor da palavra do médico, fora do âmbito profissional.
Herrar é umano. Médicos erram. Erros costumam ser pedagógicos para acertos. Para tornarem-se algo educacionalmente útil, eles precisam ser reconhecidos como tal. Quer apontado por alguém, quer percebido pelo efeito.
Há muitos anos, vacinei-me contra a quebra de sigilo por telefone. Aliás, o telefone- que hoje passou a conviver nos nossos bolsos e mãos- é um cavalo de Tróia da Ética. O antígeno do falar para um desconhecido gerou-me os anticorpos necessários à imunização. Era época de tratamento do infarto agudo do miocárdio com mais observação dos efeitos do que com intervenção sobre causas.
O paciente em questão tivera uma evolução clínica do infarto agudo do miocárdio sem complicações. Ele já estava em casa para o repouso “cicatrizante” de algumas semanas, sob licença médica do trabalho.
No consultório, eu recebi o telefonema, o primeiro capítulo da lição. Era alguém que se identificou como colega de trabalho do paciente. Ele desejava saber se a situação estava sob controle, quais eram as perspectivas de volta às atividades, etc… etc… Eu confirmei que fora um infarto agudo do miocárdio e que logo o paciente retornaria a sua função sem limitações, obviamente, ele deveria tomar certas precauções, como deixar de ser um fumante de três maços/dia. Um colega amigo, pensei, desligando o telefone.
No dia seguinte, fui procurado pela esposa do paciente. Ela me disse que o marido estava muito nervoso, seria bom que eu fosse vê-lo. O que acontecera? Outro colega de trabalho o visitou à noite dizendo que se espalhara na empresa a notícia dada pelo médico que o paciente tinha uma situação grave de saúde, que, certamente, não mais poderia desempenhar o mesmo papel profissional. Aquela pessoa que falara comigo por telefone, o “mui amigo”, já teria, inclusive, apresentado um nome para substituição para o Diretor, coincidentemente, um seu irmão.
Mea culpa! Foi a sentença imediata que proferi para mim mesmo, batendo o martelo na minha própria cabeça. Uma reunião conseguida apressada com o Diretor resolveu a questão e aliviou ambos, o paciente e quem quebrara o sigilo. Eu aprendi, definitivamente, que palavras ao telefone podem ser distorcidas sem testemunhas e empregadas num contexto danoso. Desde então, IgG reagente!
Portanto, bastou conversar para dar ensejo a uma quebra de sigilo, a informação reformatada pelo interlocutor. Perante a auto-acusação, o que me atormentou foi a consciência de que falara sobre o paciente, ficava secundário o que, de fato, dissera sem o consentimento do paciente.
Entendi que o sigilo médico não é, exatamente, um compromisso um a um com cada paciente, não perguntamos sobre liberação, habitualmente. Ele é uma virtude do ser médico. Uma especificidade profissional, que, como toda virtude, é mais bem compreendida pelo exemplo vivenciado do que num livro.
No foco da sociedade em geral, o Código de Ética Médica relaciona duas situações de quebra ética e legal do sigilo médico.
A primeira é de fácil entendimento e consenso. Intitula-se Dever Legal, portanto apoiado em lei. Exemplos simples são o Atestado de Óbito e a realização de Perícia oficial. Há, ainda, a notificação compulsória para autoridades de Saúde. O artigo 269 do Código Penal brasileiro reza que deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória tem a pena de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
A Portaria 1271 de 2014 do Ministério da Saúde atualizou a Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde pública nos serviços de saúde públicos e privados em todo o território nacional. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2014/anexo/anexo_prt1271_06_06_2014.pdf. Todo médico tem a obrigação ética de conhecê-la, pois ela sustenta um dever legal de quebrar o sigilo médico. Não, há, pois, necessidade de consentimento do paciente.
No contexto, doença é enfermidade ou estado clínico, independente de origem ou fonte, que represente ou possa representar um dano significativo para os seres humanos. Já agravo é qualquer dano à integridade física ou mental do indivíduo, provocado por circunstâncias nocivas, tais como acidentes, intoxicações por substâncias químicas, abuso de drogas ou lesões decorrentes de violências interpessoais, como agressões e maus tratos, e lesão auto-provocada.
A segunda é de interpretação complexa. Ela responde pelo título de Justa Causa. Subentende que haja um fato ligado ao exercício profissional que tenha um claro propósito superior à da autorização do próprio paciente, mas não apoiada numa lei. Assim, há de se considerar o incluído no artigo 5º da Constituição Federal: Ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. E o médico não está acostumado a pensar desta maneira quando ele cuida do paciente.
De alguma forma, o dever do sigilo deixa o médico numa zona de conforto. Ela se modifica quando se apresenta um fato com possibilidade de ser um valor para a “transgressão”. A alegação de justa causa sustenta-se na visão de injustiça se o médico se mantiver abrigado no sigilo. Assim, movimentar-se para considerar que há uma causa que seria justa para exceção ao é vedado ao médico revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício da profissão, é decisão de foro íntimo sobre a responsabilidade.
O uso da causa justa, portanto, deve ser excepcional e com fundamentação legítima moral ou social calcada num interesse para terceiros na relação médico-paciente. Pode-se imaginar a amplitude de tipos de situação desafiadora de enquadramento. Cada caso deverá ser cuidadosamente analisado. Eventuais entendimentos morais distintos costumam trazer polêmica sobre a legitimidade de eventual revelação do sigilo médico.
A justa causa é uma brecha no Juramento de Hipócrates, que, em nenhuma hipótese, deverá ser uma “arma” para benefício do médico apartado da sociedade.
A complexidade da situação fica evidente na análise histórica que se segue.
Em 1980, o Conselho Federal de Medicina expediu a Resolução CFM 999/80 sobre segredo profissional http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/1980/999_1980.pdf.
Dela fazem parte:
Art. 1º – O médico tem o dever de revelar o que deveria constituir segredo profissional, desde que o caso se enquadre nas hipóteses do Art. 38 do Código de Ética Médica;
Art. 2º – O médico deve prestar informações sobre fatos mantidos sob o resguardo do segredo profissional, nos casos de crimes de ação pública, quando solicitado por qualquer autoridade, inclusive policial, desde que essa preliminarmente lhe declare tratar-se desse tipo de crime, não dependente de representação e que não exponha a parte interessada a procedimento criminal.
Parágrafo único – Negada essa declaração pela autoridade, o médico responderá que deixa de atender ao solicitado, com amparo nos preceitos legais e normas éticas pertinentes, comunicando o ocorrido ao CRM.
Art. 3º – Quando houver “justa causa”, o médico pode revelar o segredo profissional.
Art. 4º – São casos constitutivos de “justa causa” os enumerados do Art. 37 do Código de Ética Médica.
Art. 5º – Nos demais casos, quando não houver dever legal, somente o médico, segundo seu foro íntimo e por seu entendimento ético, tem poder de decidir se há “justa causa”, para a divulgação de fato conhecido através de exercício profissional.
À época estava em vigor o Código de Ética Médica lançado em 1965 e que esteve válido até 1984.
Os artigos do Capítulo 5: Segredo Médico, são:
Artigo 36º- O médico não pode considerar-se desobrigado da guarda do segredo, mesmo que o paciente ou interessado o desligue da obrigação.
Artigo 37º- É admissível a quebra de segredo profissional nos seguintes casos: a) quando o paciente for menor e se tratar de lesão ou enfermidades que exija assistência ou medida profilática por parte da família, ou envolve responsabilidade de terceiros, cabendo ao médico revelar o fato aos pais, tutores ou outras pessoas sob cuja guarda ou dependência estiver o paciente; b) para evitar o casamento de portador de defeito físico irremediável ou moléstia grave e transmissível por contagio ou herança capaz de por em risco a saúde do futuro cônjuge ou de sua descendência, casos suscetíveis de motivar anulação de casamento, em que o médico esgotará, primeiro todos os meios idôneos para evitar a quebra de sigilo; c) quando se tratar de fato delituoso previsto em lei e a gravidade de suas conseqüências sobre terceiros crie para o medico o imperativo de consciência para revelá-lo á autoridade competente.
Artigo 38º- A revelação do segredo médico faz-se necessária: a) nos casos de doença infecto contagiosa de notificação compulsória ou de outras de declaração obrigatória (doenças profissionais, toxicomania etc.); b) nas perícias judiciais; c) quando o médico está revestido de função em que tenha de pronunciar-se sobre o estado do examinado (serviços biométricos, juntas de saúde, serviços de companhias de seguros etc.), devendo os laudos e pareceres e nesses casos limitados ao mínimo indispensável, sem desvendar-se, se possível, o diagnóstico; d) nos atestados de óbito; e) em se tratando de menores, nos casos de sevicias, castigos corporais, atentados ao pudor, supressão intencional de alimentos; f) nos casos de crimes, quando houver inocente condenado e o cliente, culpado, não se apresentar á justiça, apesar dos conselhos e solicitações do médico; g) nos casos de abortamento criminoso, desde que ressalvados os interesses da cliente.
Portanto, o médico tinha autonomia para preservar o segredo médico mesmo em contrariedade ao paciente e a revelação era permitida sob situações admissíveis de quebra (justa causa) e necessárias de quebra (dever legal). Contudo, o ítem c) do artigo 37 menciona previsto em lei, trazendo confusão, pois seria dever legal. Fica evidente, entretanto, a dificuldade de tomada de decisão, pois cada um poderia ter o seu entendimento do significado de mais ou menos afirmativo de admissível. Verifica-se, ainda, que parte do conteúdo perdeu a aplicabilidade na atualidade do século XXI.
A Resolução CFM 999/80 foi revogada 20 anos depois e substituída pela Resolução CFM 1605/2000 http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2000/1605_2000.htm:
Art. 1º – O médico não pode, sem o consentimento do paciente, revelar o conteúdo do prontuário ou ficha médica.
Art. 2º – Nos casos do art. 269 do Código Penal, onde a comunicação de doença é compulsória, o dever do médico restringe-se exclusivamente a comunicar tal fato à autoridade competente, sendo proibida a remessa do prontuário médico do paciente.
Art. 3º – Na investigação da hipótese de cometimento de crime o médico está impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo criminal.
Art. 4º – Se na instrução de processo criminal for requisitada, por autoridade judiciária competente, a apresentação do conteúdo do prontuário ou da ficha médica, o médico disponibilizará os documentos ao perito nomeado pelo juiz, para que neles seja realizada perícia restrita aos fatos em questionamento.
Art. 5º – Se houver autorização expressa do paciente, tanto na solicitação como em documento diverso, o médico poderá encaminhar a ficha ou prontuário médico diretamente à autoridade requisitante.
Art. 6º – O médico deverá fornecer cópia da ficha ou do prontuário médico desde que solicitado pelo paciente ou requisitado pelos Conselhos Federal ou Regional de Medicina.
Art. 7º – Para sua defesa judicial, o médico poderá apresentar a ficha ou prontuário médico à autoridade competente, solicitando que a matéria seja mantida em segredo de justiça.
Art. 8º – Nos casos não previstos nesta resolução e sempre que houver conflito no tocante à remessa ou não dos documentos à autoridade requisitante, o médico deverá consultar o Conselho de Medicina, onde mantém sua inscrição, quanto ao procedimento a ser adotado.
Esta menção a conflito reforça a validade de uma Comissão de Bioética em função do seu caráter multiprofissional e interdisciplinar. Em termos bem resumidos, o profissional da saúde precisa aprender com o advogado e este com aqueles no contexto, e não somente nas questões difíceis de quebra do sigilo médico, também nos muitos outros conflitos que habitam o cotidiano da beira do leito.