Para que serve uma Faculdade de Medicina? Esta resposta foi simples há alguns séculos quando foi inaugurada a pioneira Escola de Salerno: prover um curso superior para a formação do médico.
Na atual situação da Medicina no Brasil, opções de resposta em ambientes mais ou menos formais incluem: a) formar médicos; b) prover um diploma superior; c) habilitar a frequentar uma Residência Médica; d) fazer pesquisas; e) gerar empregos; f) sustentar lucros; g) apoiar programa de governo.
Cada uma destas possibilidades de opinião, não necessariamente excludentes entre si, tem o potencial de provocar discussões acaloradas. Vale a parábola do elefante, cuja figura é diferentemente interpretada por deficientes visuais na dependência da parte do corpo que cada um apalpa. A tromba traz uma imaginação oposta ao do pequeno rabo, por exemplo.
O Conselho Regional de Medicina do estado de São Paulo – com uma visão acurada- deu um toque no corpo imenso e respeitável e percebeu a configuração de “paquidérmico” distanciamento entre o interior de Faculdades de Medicina e o mundo real das necessidades externas de cuidados com a saúde. Preocupante!
O Brasil tem muitas Faculdades de Medicina e outras estão aí chegando. Todas têm, evidentemente, alunos, professores e currículos. Não vamos nos ater a números ou a análise crítica sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina vigente a partir de 2014, “resolvida” pela Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação.
Preferimos neste post do blog Bioamigo repercutir o resultado do chamado Exame do Conselho Regional de Medicina (CREMESP) de 2014.
Em termos práticos, a maioria (55%) dos jovens recém-formados que estão prestes a receber a permissão da sociedade para exercer a Medicina, representada pelo número do CRM, denunciou, pelo mau desempenho nas questões, a baixa qualidade da formação proporcionada por suas Escolas de Medicina. O que quer dizer, também, que 45% mostraram boa formação, especialmente os egressos de Escolas Públicas- excelência é possível! Uma admissível relação inversa entre mensalidade (devida) e qualidade (indevida) levanta a questão: qual é a estimativa de custo da infra-estrutura essencial para a formação qualificada do médico?
Considerando o dilema de causalidade, quem veio primeiro, o ovo ou galinha -mais preocupação de filósofos do que de avicultores- e aplicando-o no aspecto da influência da relação mestre-discípulo, é certo que o mau aprendizado enquanto aluno tende a gerar subsequente mau ensinamento enquanto professor, desencadeando um efeito dominó. Movimento de queda, ano a ano, nova Escola a nova Escola, bolsões a bolsões de pouca atenção ao ensino, da sustentação mestre-dependente da integração entre as necessidades básicas dos cuidados com a saúde e o acelerado progresso da Medicina exigente de contínuos ajustes pedagógicos com presteza supressora e aditiva entre o que é clássico e o que é inovação. Por isso, o exame do CREMESP sugere, no âmbito do dilema ovo ou galinha, que quem está vindo primeiro é o (mau) Ensino. Quanta alegria na passagem pelo Vestibular e no transpasse pela Formatura não deveria associar-se à tristeza da má avaliação do jovem médico pelos seus seis anos de dedicação, mas é realidade constatada nos últimos anos.
Hoje, os avaliados como recém-bem formados e como recém- mal formados são médicos em igualdade de condição legal. Amanhã, diferenças de profissionalismo serão notadas entre os dois “grupos”? A eticidade de um desejável acompanhamento comparativo entre os “grupos”, como objeto de pesquisa que possa trazer maior objetividade a uma proposta de ampliar o Exame para todo o Brasil, deve ser motivo de reflexões sobre prós e contras. Tão somente para lembrar, no Brasil, o exercício da advocacia exige o chamado Exame da Ordem e, num outro polo de exigência, não há obrigatoriedade do respectivo diploma para o jornalismo de acordo com parecer do Supremo Tribunal Federal.
Uma legislação sexagenária impede que aqueles que não atingiram um “critério de aprovação” de 60% de acerto da prova tenham negada solicitação de registro no CRM para o exercício da Medicina, e que, assim passassem a correr atrás da satisfação de pré-requisitos técnicos. A formulação das questões do Exame do CREMESP não é complexa, não é exigente de experiência acumulada, ela admite a compatibilidade com o conhecimento que se presume existir no momento de colação de grau.
Neste contexto de dissociação entre as representatividades do primeiro carimbo de médico e do diploma de médico cabe refletir sobre o quanto deficiências da graduação podem ser supridas pela pós-graduação da Residência Médica.
Considerando que na prova de 2014 questões de Clínica Médica e de Pediatria tiveram baixo índice de acertos, já se pode supor que a Residência Médica poderá trazer aperfeiçoamento profissional tão somente a uma delas. Pois ambas são ditas de Acesso Direto, ou seja, elas dispensam uma Residência prévia, o que significa que nos próximos anos o futuro Pediatra não preencherá lacunas de Clínica Médica e aqueles que seguirão uma especialidade necessitada de prévia Residência em Clínica Médica não deverão entrar em contato eficiente com os cuidados com a saúde de interesse da Pediatria.
Por outro lado, é importante salientar que foi a prática da Cirurgia que primeiro criou um contramovimento para a constatação de que a graduação não pode produzir um “médico pronto” para assumir responsabilidades sobre qualquer método terapêutico. Foi o cirurgião William Stewart Halsted (1852-1922) quem introduziu uma extensão sistematizada da graduação para treinamento no Johns Hopkins Hospital que receberia o nome de Residência Médica. A sua notável biografia inclui uma solicitação à Goodyear Rubber Company para confeccionar luvas de borracha para resolver a dermatite de contato da esposa-enfermeira causada por solução antisséptica- somente 3 anos depois, em 1896, foi que o cirurgião Joseph Colt Bloodgood (1867-1935) começou a usá-las com a finalidade asséptica. E também, o pioneirismo da transfusão de sangue, pois transferiu o próprio sangue para a irmã que apresentava hemorragia pós-parto, seringa a seringa, em 1881, duas décadas antes do conhecimento do grupo sanguíneo ABO e mais de meio século antes da descoberta do fator Rh.
O cenário que se deslumbra é ou uma “inserção no mercado” imediata, ou, a ser reavaliado pela frequência a uma Residência Médica, o reforço da especialização precoce, da dedicação apressada a áreas de atuação, em carência de amplitude de visão básica sobre Medicina. Inclui escassez de entendimento sobre os significados técnico-científico e humano do ser médico, expresso em inter-relações do benefício à doença sustentado pelo zelo com a Medicina, da segurança do paciente pelo médico vigilante acerca de imprudências e de adversidades e do respeito ao direito do paciente de participar ativamente das tomadas de decisão sobre a própria saúde (autonomia).
Estas realidades exigem profundidade reflexiva pelo direito principal do cidadão – o direito à vida-, por todos os que têm responsabilidades com a qualidade do exercício da Medicina brasileira.
A Bioética da Beira do leito é fórum de discussão que situa a relação estudante(recém-formado)-Faculdade e Medicina no campo de fortes influências sobre o triângulo superior do Pentágono dos cuidados com a saúde.