Houve o tempo em que o médico anotava detalhadamente os dados da história, do exame físico e da evolução clínica do paciente e aguardava o resultado da necropsia para fazer correlações. Muitas doenças foram descobertas desta forma quando inexistiam métodos terapêuticos eficientes. A morte era, pois, um instrumento didático. Óbitos precedentes fundamentavam diagnósticos subsequentes e assim os livros de Medicina foram sendo escritos.
Desde o século passado, a história natural de doenças pode ser modificada por intervenções preventivas e/ou terapêuticas, dando sobrevida ao paciente. Vive-se mais anos, convive-se com mais doenças tendo boa qualidade de vida. O progresso da Medicina é um dos fatores capitais do aumento da expectativa de vida ao nascer.
Na condução de um determinado caso, a análise do prognóstico inclui a possibilidade da morte. Ela não é desejada, evidentemente, mas pode ser admissível. Estatísticas de maus resultados, esperados ou inesperados, assim, sustentam a necessidade da cogitação. Paciente e familiar temem complicações fatais, o médico as evita pela excelência das práticas, na medida do que for possível.
A Ética Médica apresenta atualmente duas conquistas da sociedade que têm interligação com o prognóstico da circunstância clínica. São a ortotanásia, quando a Medicina não mais pode evitar a morte no curto prazo e o não consentimento a uma realização diagnóstica ou terapêutica quando, então, chances de morte podem ser drasticamente incorporadas.
A ortotanásia compartilha uma convergência de opinião entre médico e paciente/familiar. Reconhece-se a limitação da Medicina, privilegia-se a evitação do sofrimento, enfim, concorda-se que se pratica o respeito à dignidade no processo de morte.
O não consentimento já traz dissensões em vários matizes. A influência no prognóstico é variável na intensidade e no tempo. Pode até não ter nenhuma importância, como em determinadas recomendações preventivas. Mas e quando resultar na não aplicação de uma legítima fundamentação científica de utilidade e de eficácia terapêutica, que deixa livremente fluir a patogênese da doença?
O Código de Ética Médica dá uma instrução de ressalva sobre o respeito à autonomia do paciente. É a iminência de morte. A morte evitável pela aplicação dos recursos da Medicina, assim, deixando de fora a ortotanásia. E com o recente instrumento da Diretiva Antecipada de Vida, igualmente, a questão do prognóstico fica de suma importância, pois o documento subentenderia situações de forte perspectiva de má qualidade de vida futura. Deixa de fora o restitutio ad integrum, como no caso de um acidente em que a saúde é perfeitamente recuperável com internação em UTI, intubação traqueal e ventilação artificial, diálise peritoneal, etc.. etc…
O tema envolve complexidades. Há o dever do médico de esclarecer o paciente sobre as conseqüências de eventual recusa à aplicação de determinado tratamento segundo as boas práticas e há o direito do paciente de dar ou não consentimento, inserido na expressão de liberdade, que representa um direito de ordem fundamental garantido por nossa Constituição.
Tomemos como exemplo o paciente Testemunha de Jeová, em que a questão da liberdade ganha o acréscimo da religiosa. Ele não deseja a morte- o que equivaleria ao suicídio-, admite-a , é verdade, mas sem desejá-la. Ele pretende o emprego de métodos beneficentes que não a transfusão de sangue para continuar vivendo como compreende ser digno.
Entendo que o médico não pretende praticar nenhuma intolerância religiosa quando “batalha” para dissuadir o paciente Testemunha de Jeová da recusa que poderá comprometer o prognóstico da situação clínica.
O médico foi treinado para o bem terapêutico. É difícil para ele ver um paciente deteriorando a circunstância clínica que poderia ser revertida com uma “simples” transfusão de sangue, tão segura ultimamente. Grande benefício, pouco potencial de malefício, ele pensa. Ensinamentos e diretrizes sobre transfusão de sangue não contém considerações sobre como ele deve atuar perante recusas à necessidade criteriosa.
Mas, o paciente não está se opondo ao conhecimento do médico, ele está respondendo com a sua crença, praticando os deveres que dela decorrem, a prioridade é de ordem transcendental. Duas interpretações de textos de importância capital em conflito, o Livro de Medicina e a Bíblia.
Os médicos que não evitam cuidar de paciente Testemunha de Jeová e prosseguem prescrevendo o consentido, esforçando-se para respeitar a liberdade religiosa que limita a sua prática, contribuem para a necessária ampliação da discussão sobre o princípio da autonomia em Medicina. A relação médico-paciente possui mais do que a ciência das evidências.
Há 10 anos, fui relator do Parecer 007/2004 da Comissão de Bioética do Hospital das Clínicas FMUSP: Orientação sobre Recusa de Transfusão de Sangue do Testemunha de Jeová, aprovado em plenária. http://www.hc.fm.usp.br/images/pdf/dc/parecer/parecer_07_2004.pdf
A oportunidade foi altamente instrutiva pela demanda da pesquisa na elaboração e pelas solicitações que dela decorreram no complexo hospitalar. Desde então, vivenciando as recusas, reforcei, que quem deseja, de fato, envolver-se com Bioética precisa construir expertise pela experiência na beira do leito.
Participar ativamente do mundo real das crises da beira do leito é a única maneira de prover legitimidade ao apoio a colegas que desejam um caminho por entre meandros morais para a tomada de decisão. É esta partilha que distingue o valor da sensibilidade às contradições, a vantagem da compreensão dos conceitos e a obrigatoriedade da ampla análise sobre consequências para a formulação dos próximos passos.
O não consentimento do paciente subentende o modo com que ele encara a situação, razão pela qual preferências verbalizadas podem ser divergentes das habitualmente vigentes no cotidiano do médico. E quando há proximidade com o risco de morte, acentua-se a preocupação com a moralidade em tomadas de decisão.
A morte como um fato da vida a ser evitado, adiado ou resignado tem a Bioética como área de interesse. Em qualquer das eventualidades, a Bioética contribui para estruturar o raciocínio e dar coerência a justificativas e a argumentos para o colega que vai assumir a responsabilidade pelos próximos passos.