A Clínica é Soberana. É para falar à boca cheia ou para esquecer?
Será que a proverbial expressão dos clínicos persiste uma grande chave da Medicina ou tão-somente um chavão? Conserva utilidade para abrir portas de direcionamento para diagnóstico e para conduta terapêutica ou tornou-se termo desgastado, desprezado mesmo, quiçá peça de museu?
Entendo que a Clínica mantém a majestade. A ser honrada numa grandeza que é periodicamente recalibrada, pari passu com recombinações do clássico e de inovações de uma Medicina cada vez mais globalmente normatizada.
Pretensões de reduzir a importância de A Clínica é Soberana sustentam-se na eficácia de ferramentas desenvolvidas para ampliar o alcance tradicional dos órgãos dos sentidos e maximizar a capacitação para o raciocínio clínico. Entre elas, estão números recolhidos do sangue e imagens do invisível sob a pele, indicadores e reveladores poderosos incorporados ao cotidiano da Medicina. De fato, nenhuma prática da prudência e do zelo nos cuidados com a saúde dispensa tais complementos, na maioria do casos.
Todavia, estes instrumentos de benefício e de segurança para o paciente estão longe de destronar a Soberana Clínica. Na verdade, a sinergia homem-máquina redesenha a sua legitimidade. A Clínica é Soberana expressa-se sob nova estética na beira do leito com matizes da diversificada proficiência e da solidariedade de métodos investigativos e saneadores.
O fascínio por A Clínica é Soberana está enraizado na interação de dois seres humanos. A emissão de informações desde o paciente deve servir de guia prioritário para a atuação do médico. Por isso, o temor do rebaixamento do caráter humano da Medicina por uma supervalorização da tecnicidade baseada em máquinas que possa colocar a expressão clínica num plano decisório subalterno.
Médicos que como eu têm número de CRM baixo iniciaram o exercício profissional com quantidade reduzida de complementos propedêuticos, agregaram, ao longo de mais de 40 anos, o préstimo de “informações tecnológicas” e mantiveram uma Medicina respeitosa à relação médico-paciente. Assim se conduzindo, eles construíram um status de excelência profissional que pode ser resumido em: a estratégia humana combinada à acuidade tecnológica é parceria superior a cada componente isolado.
Em outras palavras, o acatamento ao Princípio fundamental V – Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente, do Código de Ética Médica vigente, faz-se pelo poder de uma liderança humana que valoriza com senso crítico a tecnologia.
A Clínica assim persiste Soberana, evidentemente, sem autoritarismos e desapegada de achismos, produzindo competência ajustada às validades globalizadas dos cuidados com a saúde. Ou seja, a Clínica Soberana dá toque humano a informações “da máquina”, muitas delas imprescindíveis para a “governabilidade” clínica.
A numerosidade dos métodos diagnósticos e terapêuticos disponíveis requer uma disciplina de utilização com lastro na Ciência e no Humanismo. A Ciência dá uma visão generalizada sobre benefícios, malefícios e indiferenças, enquanto que o Humanismo direciona para a individualização que respeita interações biológicas, preferências e valores peculiares. De alguma forma é a Clínica Soberana que une intenção, decisão e ação com a eticidade que se espera.
A Clínica Soberana significa neste século XXI coerência em tomadas de decisão sensível, ao mesmo tempo, ao que as máquinas são superiores e às propriedades da inteligência humana e da Ética.
É fato que anamnese, exame físico e exames complementares nem sempre mostram-se confluentes. É o espírito da Clínica Soberana que deve analisar e dimensionar as dissociações porventura identificadas. Assim, a Clínica Soberana não significa que, por exemplo, ausência de uma síndrome febril deva negar uma evidência irrefutável de infecção por algum método complementar. A Clínica Soberana facilita enxergar de modo suscetível ao momento clínico. Afinal, interpretar o resultado de um exame complementar como falso-positivo ou como falso-negativo ou considerá-lo verdade relevante ou irrelevante para a circunstância não pode prescindir da referência da Clínica e da pressuposição que o adjetivo soberana representa autoridade sem extremismos na beira do leito de nossos tempos.
É interessante ressaltar que os princípios da Beneficência e da Segurança (Não Maleficência) da Bioética são bem compreendidos na concepção atualizada de A Clínica é Soberana. O benefício da correção eletiva de uma colecistopatia calculosa identificada como um “achado” num exame de imagem, por exemplo, deverá ser adiado em função do surgimento de uma situação clínica não a ela ligada e que acrescenta risco cirúrgico ao paciente. A segurança da individualização pela Clínica Soberana, que, ao mesmo tempo, reconhece o benefício preventivo da intervenção e analisa o timing de máxima segurança. A Clínica é Soberana exerce a majestade da prudência!
Já o Princípio da Autonomia traz mais complexidade de apreciação. O direito de o paciente participar ativamente de processos decisórios sobre a sua saúde requer uma Clínica Soberana tolerante, destituída de um paternalismo forte na tomada de decisão. Paradoxalmente, não-consentimentos a exames complementares pelo paciente trazem recuos a tempos com menos recursos da Medicina, exigindo, de certa forma, a hierarquia do senso clínico e a perspectiva do prognóstico associado ao niilismo. Razão do valor do aprendizado continuado sobre probabilidade pré-teste em feedback com a vivência sobre a complementaridade, a ser aplicado quando esta estiver indisponível. Ressalte-se que o deontológico salvo em iminente risco de morte que revoga a autonomia do paciente ampara-se no poder de A Clínica é Soberana, herança histórica intacta na modernidade.
A Bioética da Beira do leito entende que a beira do leito qualifica-se pela prática da Clínica Soberana que, devidamente ajustada às realidades da diversidade propedêutica e terapêutica, preserva-se guardiã do foco humano nas tomadas de decisão em Medicina!
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