estemunha de Jeová
ransfusão de sangue
omada de decisão
olerância
ransdisciplinaridade
ACP é uma mulher de 62 anos, Testemunha de Jeová. Ela foi submetida a histerectomia e apresentou hemorragia intra-operatória. A paciente não recebeu transfusão de sangue, apesar do nível sérico de hemoglobina ter atingido 5,8 g/dl, respeitando-se os valores da paciente. No terceiro dia de pós-operatório ocorreu choque séptico, nível sérico de hemoglobina de 4,8 g/dl e como a paciente preenchia critérios para risco iminente de morte, realizou-se a transfusão sanguínea. Após 17 dias, nove dos quais em UTI, a paciente teve alta hospitalar. ACP após ter sido informada do tratamento referia a todo instante que se sentia uma morta viva, não conseguia conviver com o conhecimento que um sangue que não era seu agora corria em suas veias, porque haviam feito isso com ela que sempre respeitara os mandamentos da sua religião. Um médico da equipe conversou longamente com ACP. Lembrou-lhe que houve o atendimento a sua crença enquanto foi possível mantê-la razoavelmente estável, mas que uma grave manifestação clínica forçou a realização imediata da transfusão de sangue, e graças às providências ela sobrevivera. Explicou, ademais, que como médico tinha o dever de acatar o Código de Ética Médica e que este priorizava a obrigação da aplicação de métodos potenciais reversores da extrema gravidade clínica sempre que houvesse o risco iminente de morte, acima de qualquer entendimento de autonomia (http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=20660:codigo-de-etica-medica-res-19312009-capitulo-v-relacao-com-pacientes-e-familiares&catid=9:codigo-de-etica-medica-atual&Itemid=122). O médico justificou ainda à paciente que ela estava com a consciência comprometida pelo choque séptico, razão pela qual ele não pode esclarecê-la no momento da decisão da equipe. Todos os circunstantes ficaram com a sensação que a paciente teria preferido morrer a viver com saúde mas incomodada com a memória de ter recebido transfusão de sangue. Um neto estudante de Medicina transmitiu à equipe como os familiares, todos Testemunha de Jeová, manifestavam períodos de ambivalência entre a ascendência religiosa e a disposição da equipe médica.
O caso ilustra um dos muitos dilemas que se manifestam cotidianamente na beira do leito e realça o interesse médico pelo apoio de profissionais motivados e treinados para lidar com desentendimentos entre o proposto por um valor do paciente e o recomendado por um dever deontológico.
É no desconfortável contexto da desarmonia que a Bioética da Beira do leito tem poder para funcionar como catalisador da interação respeitosa no pentágono de relações entre Medicina, médico, paciente/familiar, instituição de Saúde e sistema de Saúde. As várias combinações possíveis de encontros entre dois ou mais ângulos animam-se pela interdisciplinaridade que traz facilidades para mútuas compreensões.
O envolvimento religioso do caso em questão faz com que a Bioética da Beira do leito ultrapasse as questões científicas da Medicina e entre no campo da experiência espiritual da sociedade. Desta forma, ela vai além da interdisciplinaridade, direciona-se para a transdisciplinaridade, valoriza o transcultural, esforça-se por entender o ser humano cuidando e sendo cuidado por outro ser humano em distintos e complexos níveis de realidade. No caso acima, o cenário passou do destaque para o rigor do crente na Biblia (pré-choque séptico) para o rigor do crente no Livro de Medicina e neste deslocamento, a Bioética da Beira do leito é capaz de atuar com livre trânsito pelas fronteiras estabelecidas, assim contribuindo para levar pseudópodos de tolerância aos lados opostos.
A psicóloga Graziela Zlotnik Chehaibar interessou-se em decodificar comportamentos da beira do leito no entorno do binômio não consentimento – não transfusão de sangue compreendendo pacientes Testemunha de Jeová internados com chance de virem a apresentar graus importantes de anemia rapidamente progressiva. Chehaibar debruçou-se academicamente sobre o tema e obteve mérito para receber o título de Doutor em Ciências pela Faculdade de Medicina USP.
A pesquisadora concluiu haver cinco perfis de atitudes, três de médicos e dois de pacientes.
Perfil de médico Pragmático:
Busca respaldo para a decisão, utiliza leis, pareceres, protocolos, documentos e normas que amparam a relação com o paciente.
A minha opinião é que transfundo. Eu peço para assinar o consentimento informado que faço em toda operação.
A médica disse que para fazer cirurgia neste hopsital tinha que rasgar esse termo (do paciente) e assinar um termo (do médico).
Perfil de médico Autonomista:
Valoriza a autonomia do paciente, prioriza o direito de escolha do paciente. Entende que cada pessoa é responsável por suas decisões, não entrando no mérito da religião no decorrer da avaliação.
Eu não tentei negociar com ele, eu aceitei o que ele propôs. Não tem negociação, eles chegam falando eu tenho um documento e não quero que me transfunda. Não houve da minha parte nenhuma tentativa de mudar a ideia do paciente.
Perfil de médico Deliberador:
Avalia caso a caso. Promove o diálogo. Considera técnicas alternativas. Atua com flexibilidade em casos que considera dentro de riscos aceitáveis. Pode optar por encaminhar o paciente para outro colega.
Nada prepara você suficiente para uma decisão difícil dessa. Você pode ter N fatores para justificar uma transfusão e N fatores para não transfundir.
Eu não aguento saber que posso fazer e não fazer. Por respeito às convicções da pessoa, eu prefiro não fazer e encaminhar para uma pessoa que faça.
Perfil de paciente Ortodoxo:
Prioriza sua fé acima de tudo. Mantém-se estritamente dentro do que é prescrito pela comunidade. Já tem as escolhas estabelecidas. Não teme a morte. Abre mão do tratamento proposto quando percebe que pode não ser respeitado na escolha.
Eu não transgrido de forma nenhuma nem que for para morrer.
Perfil de paciente Liberal:
Tem alguma flexibilidade. Busca manter o respeito a sua crença, mas não está disposto a impedir o tratamento. Pode transferir a decisão para o médico.
Se ele transfunde, a responsabilidade é do médico, eu disse que recusava.
A diversidade dos perfis é lição sobre a inconveniência de rótulos de confinamento do pensamento. Há pacientes Testemunhas de Jeová que vem a receber transfusão de sangue e há médicos que deles cuidam desrespeitando a diretriz que recomenda a transfusão de sangue para salvar vidas que estejam com níveis séricos de hemoglobina aquém de 6 g/dl (https://www.scahq.org/files/STS-SCA_Transfusion_Guideline.pdf).