Em palestra recente, eu fiz a pergunta marota: “… Quem sabe o que é acrasia?…”. Os que “sabiam” responderam que é erro na colocação da crase num texto. Na verdade, não sabiam! Chego lá.
A palestra era sobre Bioética da Beira do leito. Particularmente sobre o empenho do médico para que o paciente mude hábitos de vida considerados prejudiciais à saúde.
O objetivo era mostrar o quanto a Bioética da Beira do leito põe-se à disposição dos dilemas e dos conflitos da relação médico-paciente e faz sugestões de atitudes. E o seu valor para a análise judiciosa pelo médico das muitas descobertas acerca dos juízos humanos.
Uma conclusão foi que, de surpresa em surpresa, o médico convence-se que o que ele conhece de Medicina, o que racionalmente endossa ser de utilidade clínica, nem sempre é bem-vindo para o paciente, especialmente em se tratando de propostas de mudança de hábito.
A Bioética da Beira do leito chama a atenção para esta possibilidade de frequência de dissociação entre a visão de futuro do médico e a de presente do paciente. Enquanto o médico enxerga uma doença com risco de desenvolvimento, o paciente hierarquiza o prazer do momento. Um conflito entre razão e afeto. Bem evidente, aliás, quando se verifica que médicos fumam.
A Bioética da Beira do leito valoriza a vontade. Enxerga-a como a junção do desejo com o movimento para o alcance. O desejo antecipa e a vontade impulsiona para a realização. É componente essencial da tomada de decisão consentida na beira do leito. O “…Vamos junto, doutor…” versus o “… Entendo o que o senhor me diz, mas não vou fazer, doutor…”.
A Bioética da Beira do leito parte do princípio que é imanente ao médico o desejo de cuidar do paciente com prudência e zelo. Ele é legado contínuo de uma geração para a seguinte. Desejo de aplicar o benefício validado e com maior chance de sucesso, desejo de não provocar adversidade evitável, desejo de respeitar valores do paciente, tolerá-los mesmo. Ou seja, o desejo de ser um médico no mais elegante significado profissional inspira atitudes da beira do leito, idealmente, afinadas com a Ética. Por isso, este binômio faz parte de destacado artigo no Código de Ética Médica vigente. É sempre bom reforçar que não é a Ética que determina fazer, é o que é para ser profissionalmente feito é que a fundamenta. O jornalista, por exemplo, deve ter vontade de dar “furos de reportagem”, revelando segredos até então, por exemplo, que ouviu de uma fonte que deixa oculta. Se esta mesma pessoa fosse um médico, comportar-se-ia de modo oposto.
A Medicina Preventiva reconheceu vários fatores de risco para doenças no decorrer do século XX. O médico prudente e zeloso deseja que, se presentes ameaças do tabaco, de alimentos, do sedentarismo e de certas doenças crônicas, por exemplo, o paciente as elimine rapidamente. Muitos pacientes desejam igualmente, mas não geram a vontade. A intenção fica presa na mente, não migra para braços e pernas. Ou seja, as recomendações de desejo do médico não surtem os movimentos para cumprimento das mesmas. É o popular entra por um ouvido, sai pelo outro, sem comunicar-se com o restante do corpo. Rotina do dia-a-dia. Motivo para campanhas de esclarecimento.
O médico pode ter papel relevante quando o paciente não consegue equalizar o desejo com a vontade em questões de prevenção. A consecução depende da circunstância. Uma situação de evento clínico, pela experiência dolorosa, facilita a ajuda. É sabido que o infarto agudo miocárdio faz o paciente repensar o desprezo pelos alertas de saúde e jurar, rapidinho, dentro de uma UTI “nunca mais fumar”, até como promessa para obtenção da boa recuperação.
Todavia, nem mesmo esta percepção da realidade da relação de causa e efeito impede que um determinado percentual de paciente quebre o juramento quando retorna à plenitude da vida. No compasso de só um cigarro, só um pedaço de carne gorda, semana de que vem retorno ao médico, o desejo jurado passa, a vontade se retrai. Há, para um subgrupo recalcitrante, o retorno à ideia de que o risco em potencial vale apenas para o vizinho: “… Agora, eu estou cuidado, medicado, portanto protegido de um segundo evento, logo...”.
Já numa consulta médica sem antecedentes de eventos mórbidos relevantes, o desejo do médico de livrar o paciente de malefícios associa-se a menor probabilidade de que o eventual compartilhamento deste desejo de saúde por parte do paciente transforme-se na vontade de efetivamente “jogar o maço de cigarro no lixo” e reduzir os churrascos de fim de semana. Neste aspecto de “O que os olhos não vêem, o coração não sente”, ir à consulta médica pode não significar reconhecer-se na consulta. Um evidente rechaço à Medicina Preventiva por um percentual de pacientes que não parece que esteja diminuindo, apesar da expansão da exposição dos vilões da saúde em vários órgãos de divulgação.
Por tudo isso, conflitos entre razão e afeto na beira do leito, que se encaixam no quadricentenário “O coração tem razões que a própria razão desconhece” de Blaise Pascal (1623-1662) é que a Bioética da Beira do leito deseja e tem vontade de discutir a questão: Até que ponto o médico deve e pode influir para dar movimento a desejos de saúde do paciente?
Repito, aspecto fundamental é que, atualmente, percentual expressivo de pessoas conhece o significado e os tipos de fator de risco. Assim, a menção aos “males polimorfos” do dia-a-dia parece redundante, muitas vezes. Há que se partir, então, da premissa que a informação não basta. E, neste contexto, cai a eficiência da repetição pelo médico, olho no olho. É preciso algo a mais no cenário, é angústia que domina o pensamento do médico em prol do melhor para o seu paciente. Se a impositiva soa eticamente incorreta e a expositiva mostra-se praticamente ineficiente, qual postura do médico na relação com o paciente seria mais objetiva?
O paternalismo forte é ao mesmo tempo eticamente inaplicável e de eficácia limitada, se, porventura, fosse aplicado para “lição de casa”. Ele vale para o período de internação, onde a velha autoridade do médico é, sorrateiramente, convertida em regulamento do Hospital: proibido fumar, alimentação sob supervisão de nutricionista, medicamentos corretamente providenciados. Assim, rebate-se qualquer interpretação mais livre ao art. 24 do Código de Ética Médica vigente: É vedado ao médico deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo. Fumódromo para paciente internado, por exemplo…
A autonomia representa uma liberdade de atitude, que, muito provavelmente, já criou algumas “leigas” chances de distanciamento do fator de risco. Se o paciente deseja prosseguir fumando, o médico lamenta, mas continua dando a assistência necessária. Registre-se, entretanto, que a Bioética da Beira do leito tem reconhecido um comportamento reducionista preocupante. Cada vez mais o relógio do médico da linha de frente parece completar um minuto com menos de 60 segundos, e assim premido pela carência de tempo, há a chance deste médico, após solicitar o sim ou o não, encerrar o processo de consentimento imediatamente após uma negativa. Nem sempre, o paciente está pronto para reagir a uma recomendação, especialmente se ela for associada à má notícia, quando, então, ele gostaria do relógio que marca um minuto a cada 120 segundos.
Sobressai, assim, o paternalismo fraco, no qual o médico deseja estimular a vontade do paciente, algo como “água mole em pedra dura, tanto bate que fura”. Ele deseja convencer num processo de comunicação, numa sucessão de diálogos, contudo, isento da vontade da coerção. Nem a simples informação “burocrática”, nem a violência de apelar para uma descrição atemorizante de efeitos do tipo que provoque “…Vou morrer se não…” Um desejo do médico que a Bioética da Beira do leito encoraja a não arrefecer dos aconselhamentos entre habituais ascensões e quedas de vontade do paciente.
Paternalismo evoca a figura masculina. Na minha experiência, a figura feminina é útil neste processo de transformar desejo do paciente em vontade. Já testemunhei esposas que assumiram o papel de “deixa comigo” e mostrou-se classe I (útil e eficaz). Quando elas acompanham o paciente, este “maternalismo” fica facilitado. Mas, caso contrário, uma sugestão à esposa do paciente por telefone, mesmo se for pessoa conhecida, é passível de interpretação de quebra de sigilo profissional. Já quanto ao marido, é menos provável que exerça o “paternalismo” com a esposa.
Mas e a acrasia? Sim, ela é termo pouco usado e significa a fraqueza, uma disposição do caráter que prejudica que um desejo fundamentado na razão sobre um benefício movimente-se para a vontade da realização. No que diz respeito à relação médico-paciente, representa um arbítrio do paciente em não seguir a recomendação da Medicina, apesar de não se opor a sua validade. Em função do exposto até agora, é argumento para o uso do paternalismo fraco: multiplicar a primeira opinião – ou dar várias segundas opiniões porque assim soa para o paciente uma mesma opinião em função de sua receptividade a tempos diferentes de escuta- dá forças para o paciente passar do desejo à vontade de eliminar fatores de risco. O envolvimento do cognitivo, do afeto e do motivacional.
Assim, a Bioética da Beira do leito é fórum para que o médico reflita sobre caminhos éticos para os cuidados com o paciente que se comporta com acrasia.
2 respostas
Pratico uma abordagem de respeito à autonomia abrindo a possibilidade de um diálogo. Como ex-fumante, sei da dificuldade para largar o vício quando se é dependente. Parei de fumar há 35 anos e digo que foi ontem, ainda tenho salivação abundante quando escrevo ou falo a palavra cigarro. Aliás, tenho um sonho repetitivo em que estou em uma praça, tiro o cigarro do bolso e o levo até a boca, acordando quando percebo que o acendi e vou tragar. O exemplo abre a possibilidade de um diálogo e abertura para sugerir terapia, sempre há uma dose de ansiedade agindo na mente do dependente. Muitos pacientes, quando termino a consulta, me perguntam: O senhor não vai falar do cigarro? Digo que ele já sabe de todos os males pela mídia, não serei mais um a pressioná-lo, o que só piora, mas que posso conversar sobre isso por ser um ex-fumante. Consigo resultado positivo em boa parte, se não o abandono, pelo menos, um uso menos compulsivo. Agora, o que vejo de barbárie, é colegas agirem de modo paternalista sendo fumantes e apresentarem uma bela cintura abdominal. Dia desses um paciente referiu-se a um colega que disse que não trataria mais dele se não parasse de fumar, não fizesse exercício e não controlasse a alimentação. O tal apresenta síndrome metabólica, glicemias em torno de 200, é fumante e está com 112 Kg, apesar de 1,70 m de altura, e seu único exercício e a mastigação. Max, belo caso e bela reflexão, vou pedir licença para pegar um caso real, mudando os nomes, e colocá-lo no livro, já havíamos fechado os casos, mas acho que vale a pena se você permitir, citando logicamente, assim aproveito para indicar os leitores a irem até o bioamigo.