Lendo um artigo sobre a repercussão da contagem de tempo sobre a vida de cada um – meu filho já tem 3 meses de idade (dito orgulhosamente), ainda faltam 2 anos para me aposentar (dito com tristeza), terei 30 dias de férias (dito com alegria), etc…, etc…- dispus-me a fazer umas continhas de multiplicar e de somar. O resultado foi 19055 dias desde que entrei na Faculdade de Medicina. Um dos dias dos primeiros percentis está bem ativo na memória.
Recordo-me que o professor de Clínica Médica Clementino Fraga Filho, nascido em 1917, terminou a primeira aula do terceiro ano no anfiteatro da Santa Casa do Rio de Janeiro com a seguinte observação: “… O médico deve, por mais certeza que possa ter no diagnóstico que faz naquele momento, deixar sempre uma portinha aberta para correções após algum tempo…”. De alguma maneira aquelas palavras grudaram em mim, estudante que nunca havia realizado, ainda, um diagnóstico num paciente no hospital. Foi um indelével ensinamento para o meu ser médico.
Este “confiar em si atento a equívocos com o paciente” foi reforçado no dia-a-dia dos 4 anos em que frequentei o Serviço da Primeira Clínica Médica, no trânsito agregador à beira do leito entre diagnósticos patognomônicos – termo em desuso que dá a ideia da certeza- e hipóteses diagnósticas.
A Medicina evoluiu e expandiu critérios para identificação da situação clínica com cada vez maior grau de credibilidade. Mais recursos terapêuticos passaram a requer mais detalhamento diagnóstico e vemos como hoje há notável precisão em várias especialidades. Uma intervenção terapêutica “exploradora” rareou em face da possibilidade da visualização por métodos de imagem.
Aos poucos fui entendendo o que o professor Clementino quis dizer, que a realidade é escorregadia e que a ciência nos coloca numa determinada posição. Um alerta duplo para um rígido compromisso com a prudência e com o zelo no lidar com o paciente que existe naquela pessoa de quem cuidamos. Uma lição do mestre!
O conhecimento científico da Medicina tende a ser infinito, estamos sempre conhecendo um pouco mais a cada dia, sem perspectiva de estagnação. A doença por mais definitiva que possa ser entendida em sua nosologia, terá sempre uma “lacuna a mais” a cada novo conhecimento preenchido sobre a mesma.
O que significa que o saber científico tende ao infinito e que na “corrida” para alcançar a doença em sua plenitude, esta encontra-se permanentemente “um passo” à frente. Considerando o doente, informações do seu genoma no futuro poderão, por exemplo, predizer sobre o binômio Benefício/Segurança entre duas condutas terapêuticas validadas para a doença/circunstância clínica. Por isso, falamos em melhor conduta terapêutica ou diagnóstica de momento (comparação com o passado, expectativa de futuro) e não numa prática definitiva.
Neste aspecto da movimentação do médico entre a posição da ciência e o ser humano doente, vale lembrar o desafio de Zenão de Eleia (490ac-430ac) ao conterrâneo mais velho Parmenides (530ac-460ac), contenda de filósofos sobre ilusão de deslocamentos, que ficou para a história conhecida como o paradoxo de Zenão.
O mitológico e ágil Aquiles foi correr com uma tartaruga. Em função da diferença da capacidade motora, a tartaruga recebeu uma vantagem. Assim a corrida começou com Aquiles (o despertar científico do século XX) na posição A, atrás da posição B da tartaruga (a doença). Pois é, quando Aquiles chegou na posição B, a tartaruga já estava na posição C, não importa se por milímetros (mais para ser elucidado e revertido acerca da doença).
Quando Aquiles atingiu a posição C, a tartaruga já estava na posição D (mais ainda a ser elucidado e revertido da doença), e assim por diante. Aquiles nunca alcançaria a tartaruga na proposição de Zenão. Pela analogia, a Medicina em permanente progresso numa corrida contra doenças, infinitamente com uma fração a mais a ser alcançada pelo conhecimento científico.
Evidentemente, para cada situação real de momento, para a aplicação do estado da arte vigente sobre a necessidade clínica, emprega-se a resolução do paradoxo: haverá a superposição de posições quando se fixa um momento final- aquele do atendimento clínico.
Há um dividendo da lição do mestre Clementino, de interesse da Bioética. Aplicar um pouco a menos do que seria a recomendação ideal validada que o médico acredita ser absolutamente útil e eficaz não será deficiência ética, caso a redução seja imposta para satisfazer a Segurança do uso do método e/ou a negativa de consentimento por parte do paciente. Ou seja, o raciocínio construtivo sobre o benefício não entendeu aplicável o ponto reduzido, enfim possível. Outro paradoxo da Antiguidade ajuda.
Eubulides, que viveu no século IV ac, em Mileto, nos legou a seguinte observação: um grão, dois grãos, três grãos acumulados não permite que alguém considere estar defronte de um monte. Para tal, há o acréscimo grão a grão, suponha-se, até atingir 5000 grãos. Agora temos um monte! Será dito. Aí chega outra pessoa e tira um grão. É altamente improvável que mude a interpretação que persiste um monte em função da supressão. Mas quando o acréscimo estava em 4999, não houve a declaração que já se tratava de um monte. Em outras palavras, a linguagem não é um instrumento preciso para expressar a visão do que nos rodeia. O não-monte do processo de acréscimo é o mesmo monte-sim do decréscimo.
O médico integra-se à relação Medicina-paciente progressiva. Passeios pelos paradoxos legados há séculos por pensadores em tempo integral sinalizam que devemos evitar tanta certeza sobre o que pensamos que sabemos. O que acentua o compromisso com o aspecto humano da relação médico-paciente.