Li Bingo, o Curioso, na infância. A leitura marcou-me sobre o valor da curiosidade. Mais recentemente, soube que o autor Hans Augusto Reyersbach (1898-1977) esteve na Amazônia na década de 20 por razões comerciais e lá se inspirou para criar o macaco personagem George – o título original é Curious George.
Segundo a Mitologia grega, foi a curiosidade de Pandora (Pan-tudo, dora-a ser dado), a primeira mulher, que fez com que ela abrisse um recipiente, apesar das recomendações em contrário, e assim deixasse escapar todos os males do mundo. A caixa de Pandora tornou-se uma metáfora: sabemos como começar, mas não temos ideia da sequência, em muitas ocasiões. Voltando ao macaco Bingo-ou George-, é por isso que macaco velho não põe a mão em cumbuca…
O Brasil está no momento atemorizado com uma consequência da “abertura da caixa de Pandora”: o escape de vírus e de mosquito agora provocando o surto de Dengue em muitos estados da Federação. Pandora não teve como fechar o recipiente assim que percebeu o mal da curiosidade. Cabe à humanidade recolocar males dentro da caixa de Pandora. Um dos instrumentos é a própria curiosidade.
No âmbito da Medicina, a curiosidade motiva o médico a caminhar pelos labirintos dos males à Saúde em busca da placa: Saída Utilidade e Segurança. A Bioética da Beira do leito, sensível à idéia tese+antítese=síntese, valoriza curiosidade como obrigatória e continuada sucessão de perguntas sobre o desconhecido ligado às incertezas da Medicina, questões sustentadas pela permanente crítica sobre a prática do binômio benefício-adversidade.
Assim, é a curiosidade crítica, a curiosidade dita epistemiológica (epistemiologia=estudo da origem, estrutura e validade do conhecimento), que está na essência do ser médico, quer na beira do leito, quer num Laboratório de Pesquisa, força motriz para utilizar meios científicos e obter resultados humanos, em cenários alternantes entre Saúde e Doença.
Insistindo no momento atual da Dengue, pois o seu combate motiva o coletivo enxergar o valor da Ética no encaminhamento de soluções nacionais, uma vacina é esperança de retirar o vírus da Dengue da lista dos males de Pandora. E por falar em vacina, foi a curiosidade de Edward Jenner (1749-1823) que trouxe a noção do estímulo à imunização pelo contato do agente infeccioso com o ser humano. Jenner soube que as ordenhadeiras de leite da vaca tinham uma forma frustra de Varíola que as protegia de subsequente gravíssima manifestação da Varíola. Curioso, Jenner -qualquer cuidado com a Ética à parte- inoculou o conteúdo da pústula da uma ordenhadeira num jovem e verificou, nas semanas seguintes, que o “voluntário da pesquisa” ficara imune à Varíola da comunidade. Como a varíola do gado era chamada de Vacinia, o termo Vacina se consagrou.
Os brasileiros aguardam a disponibilidade de uma vacina contra a Dengue. Notícias estão na mídia inoculando, por enquanto, esperanças à população. A Bioética da Beira do leito entende que a atmosfera emocional de uma epidemia não pode resultar desoxigenada de sólidas evidências científicas de benefício e de segurança, vitais para a inclusão de uma vacina contra a Dengue no Calendário de Imunização. No passo-a-passo, a Segurança representa a prudência de não provocar novas aberturas de caixas de Pandora.
Para a vacina contra a dengue, o Ministério da Saúde tem acompanhado e apoiado os esforços de desenvolvimento realizados pelo Instituto Butantan e por BioManguinhos, que atualmente encontram-se em diferentes estágios.
Ainda não há nenhuma vacina contra dengue licenciada em qualquer país. A Anvisa recebeu, em 31 de março, o primeiro pedido, em todo o mundo, de registro de uma vacina contra a dengue produzida pelo laboratório Sanofi. Essa solicitação está sendo analisada, com todo o rigor técnico que se exige para que uma vacina possa ser aplicada em população humana, principalmente por se tratar de produto inédito.
Se registro for concedido pela Anvisa, o produto pode ser utilizado, entretanto isso não significa que sua introdução no Sistema Único de Saúde.
Após o processo de registro, essa vacina, como qualquer outro produto ou tecnologia, será avaliada pelos Comitês Técnicos Assessores em Imunizações e em Dengue, do Ministério da Saúde, que reúnem especialistas e sociedades científicas e, ainda, pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec). Nessa análise levam-se em conta todas as evidências científicas disponíveis para estabelecer se a incorporação é vantajosa do ponto de vista da saúde pública, analisando-se, além da segurança e da eficácia, o custo-efetividade, o impacto epidemiológico esperado, o protocolo e estratégia de utilização do produto e o impacto orçamentário que será produzido. Esses parâmetros são utilizados em todos os mecanismos de avaliação de incorporação de novas tecnologias que existem em países desenvolvidos.
A vacina contra a dengue que está em desenvolvimento pelo Instituto Butantan ainda não completou todos os estudos necessários para solicitar o registro do produto na Anvisa. Essa vacina encontra-se em processo de finalização do ensaio clínico de fase 2, que deve estar disponibilizado para análise no final de junho. Nessa etapa, busca-se garantir a segurança da vacina para a população e avaliar a resposta dela ao vírus.
O Instituto Butantan solicitou à Anvisa, no dia 10 de abril, análise do processo de ensaio clínico de fase 3. Esse estudo, que visa comprovar a segurança e eficácia do produto, tem sua realização obrigatória para que se conceda, após sua conclusão, o registro da vacina. O Ministério da Saúde solicitou à Anvisa prioridade na análise do processo da fase 3. Após essa autorização, o Instituto Butantan poderá iniciar essa fase final de estudo.
O Ministério da Saúde tem se preparado para estabelecer as estratégias de utilização de vacinas de dengue, quando estiverem disponíveis. Com o apoio de uma rede de pesquisadores brasileiros, estão sendo estudadas as prevalências de cada sorotipo da doença nas diversas regiões do país, para estimar quais os grupos prioritários a serem vacinados. Esses estudos, realizados em 63 cidades brasileiras, são pioneiros em escala internacional e fornecerão uma base científica consistente para uma futura utilização racional de vacinas contra a dengue.
Mesmo com a possibilidade de contar, no futuro, com uma vacina contra a dengue, o combate ao Aedes aegypti continuará como uma prioridade de saúde pública, seja porque as vacinas poderão ter eficácia limitada, seja porque outros vírus, como o Chikungunya e o Zika, também podem ser transmitidos por esse mesmo mosquito.
William Wirt (1772-1834), o advogado estadunidense que deu credibilidade à Advocacia Geral no governo de James Monroe (1758-1831), deixou um valioso ensinamento sobre curiosidade: “… Capture o momento de uma curiosidade que excita para resolver dúvidas; pois se ele escapar, o desejo pode não retornar e você permanecerá na ignorância…”. Mas, acrescentaria, pense bem se não se trata de uma caixa de Pandora…