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66-Não consentimento, um ato cultural?

ser-uma-negacao-shutterstockPercebo certa dificuldade de estudantes de Medicina absorverem as nuances nem sempre simples do princípio da Autonomia. Uma possível explicação é que o aprendizado sobre a doença incute a obrigação de fazer o que se sabe útil e eficaz e a realidade do paciente requer o respeito ao consentimento para ser assim beneficiado. O tema, portanto, exige atenção pedagógica durante todo o processo de formação do médico, tanto na graduação, quanto na pós-graduação.

A relação entre a autonomia do paciente e o zelo do médico traz à mente a ideia de que o contato do paciente com o que até então desconhecia (um tratamento específico), pouco conhecia (uma dieta), ou rejeitava (uma mudança de hábito) provoca uma análise da superioridade do novo ou renovado conhecimento.

Em decorrência, vem a opção por segui-lo ou não, dispor-se a redefinições. Como está diante do médico que lhe acenou com a “novidade”, o paciente precisa comunicar-lhe se a deseja como solução para a sua necessidade de saúde e, em caso positivo, sob que condições.

Há, pois, uma interpretação pessoal da recomendação técnico-científica por parte do paciente, de valor íntimo, algo como um mecanismo adaptativo numa vida em sociedade, comportamento influenciado por dimensões pessoais e externas.

Desde Hipócrates reforça-se, geração a geração, cumulativamente, o simbolismo dos ideais da Medicina, voltado para o bem da Humanidade e cada vez mais apoiada na evidência científica, na expertise acumulada, na comprovação de resultados desejados, que bloqueiam “charlatanismos” em seu sentido de pretensões sem fundamentos. O paciente procura o médico e … não aceita a conduta nota 10 em qualquer avaliação de qualidade?

A pergunta é recorrente em aulas de Bioética: Porque é que há pacientes que negam o consentimento ao médico? Questão com várias possibilidades de respostas. Cada uma delas denunciando a pluraridade de reação da natureza humana diante de ameaças ao bem-estar e à vida. O que faz interessante notar que apesar das heterogeneidades, a maioria dos pacientes consente com a recomendação do médico, ou seja, a pluralidade unifica-se na confiança na Medicina e na incorporação que o mais desejado resultado é provável mas não garantido. E, igualmente interessante, o não consentimento desde que esclarecido ocorre muito mais pelo modo de impacção no paciente do que por embate com a  confiança na Medicina.

Numa óptica de civilização, distinções entre pessoas ocorrem em função de ordens ideológica, econômica, política e cultural – numa integração onde as três primeiras mostram-se mais mutáveis do que esta última. No ecossistema da beira do leito, onde médico e paciente, ou seja profissional e leigo, poderiam compartilhar identidades nestes quatro campos, diversidades admitem, ademais, o científico e o psicológico. Cada caso inclui consciências sobre direitos, liberdade, responsabilidade, autoridade e equidade. Torna-se a verdade local em meio a disposições globais.

Entendo que aspectos ideológicos e políticos pouco impactam no não consentimento do paciente à recomendação do médico. Pacientes mais à esquerda são cuidados por médicos mais à direita, ou vice-versa, não se importando com isso e acreditando na  neutralidade da ciência. O econômico tem seu nicho de influência, a Medicina é cara, cada vez mais, e o resultado de uma consulta paga porque admissível no orçamento pode ser um procedimento além do mesmo e que determina a rejeição à execução. Um reforço que o não consentimento não representa obrigatoriamente dúvidas  sobre a validade do benefício.

O cultural, inclusive por conteúdos étnicos e religiosos, o científico e o psicológico são as fortes fontes dos conflitos da beira do leito determinantes do não consentimento pelo paciente à recomendação do médico. Crenças, juízos morais, costumes, estados emocionais modificam o juízo de valor das diretrizes médicas de fundamentação científica acerca do benéfico e do maléfico. Há pacientes que não recebem transfusão de sangue, há filhos que impedem tratamentos em pais idosos, há pais que não vacinam seus filhos, há leitores de bula que devolvem o medicamento à Farmácia, há momentos de depressão que fazem rejeitar o medicamento de uso continuado, há o paciente que exige outro método, há a comadre que substitui a receita do médico por algo “melhor” e há o médico-paciente que não retorna para a revisão programada. Fica claro que o conceito de não consentimento transcende ao sim ou não presencial no momento da apresentação da conduta.

A Bioética da Beira do leito entende que cada pessoa carrega suas heranças biológicas e socias e suas vivências e que elas são suscetíveis de criar alertas em contato com a modernidade intimidativa da Tecnociência- que o médico aprende a manejar com tranquilidade. Alertas que podem dificultar o consentimento livre e esclarecido.

Assim, a Bioética da Beira do leito é instrumento útil para dar abrangência e profundidade a análises sobre choques de pontos de vista entre médico e paciente causados, mais habitualmente, por impactos culturais, científicos e psicológicos. Ela contribui para que os mesmos sejam trabalhados, a fim de permitir a mais eficiente e respeitosa cooperação no período de convivência entre médico e paciente que se denomina de atendimento aos cuidados com a saúde.

 

 

 

 

 

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