Estamos aqui bioeticando, estimulando o pé no chão na beira do leito, além de, claro, incentivando a mão examinadora e a mente pensante no paciente. Defendemos a sacralidade do sigilo profissional e todas iniciativas de resgate da humanização no atendimento à Saúde.
Nascido numa época em que a tecnologia em Medicina engatinhava, aprendi que é necessário ser crítico do progresso tecnológico que vai se acumulando na beira do leito. Leia-se crítico no sentido de passar pelos filtros das minhas concepções morais os efeitos benéficos e danosos dos acréscimos de máquinas.
Por somarem inegáveis utilidades, as tecnologias foram ganhando intimidade com a beira do leito e, assim, pela Bioética, cabe exaltar suas vantagens e, ao mesmo tempo, repercutir preocupações desumanizadoras e anti-clínicas das mesmas, pretendendo um equilíbrio, ou seja, a justa seleção do que é trigo e do que é do que é joio na circunstância, num cenário de brasilidade.
O convívio foi deixando claro que o problema da tecnologia não é o uso, é o abuso. As salvaguardas são para desnecessidades de informação, desperdícios de recursos financeiros, desvios éticos pela negligência com o clássico entendido como monótono e pela imprudência com novidades sedutoras.
Um fato deu um ponta pé inicial no interesse crítico pela convivência do clássico com a inovação. Faltavam 10 dias para a minha formatura na Faculdade da Praia Vermelha- assim me refiro por que nunca é demais lembrar o local onde houve a insana demolição do prédio de nobre arquitetura para forçar a transferência para a ilha do Fundão da Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil de quando entrei e da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro de quando saí- quando o mundo foi surpreendido pela realização do primeiro transplante cardíaco do planeta, num país que não se destacava na comunidade científica internacional. Dei-me conta que era um fato médico que nunca fora tema de aula, reunião científica, jornada acadêmica. As manchetes eram eletrizantes, contudo, o tempo mostrou os descuidados.
Passados cerca de 50 anos, a tecnologia é muito mais do que estetoscópio, esfigmomanômetro, aparelho de raios x e alguns mais com os quais, recém-formado, me sentia habilitado para praticar uma boa Medicina. Inovações desde então já envelheceram e muitas delas adquiriram o status de clássicas, sustentando usos éticos e abusos. Atualmente, esta dualidade cabe na polêmica Medicina Defensiva, neologismo formado a reboque de certos abusos com alta participação das tecnologias de imagem, que pretende afastar os fantasmas de interpretações de negligência pela adoção do ditado de Confúcio (552 ac- 479 ac) “Uma imagem vale mais que mil palavras”, pelo qual o filósofo chinês expressava o valor de simbolismos.
A Medicina do século XXI continua sendo um gigantesco queijo suíço com imensos buracos diagnósticos, terapêuticos e prognósticos. As deficiências de cumprimento de objetivos de reparações e prevenções das fragilidades do corpo humano estimulam pesquisas cada vez mais motivadas pela tecnologia. Os médicos, de modo geral, esforçam-se para acompanhar as validações de resultados para uso humano, um novo fármaco aqui, um aperfeiçoamento de aparelho ali, uma técnica menos agressiva acolá. É o que acontece mais próximo, contudo, existe um mundo a mais, num distante que aparenta logo alcançável, assim, se comportando como realização de certas ficções científicas concebidas não faz muito tempo.
É de se supor que próximas gerações médicos, já no início da segunda metade deste século, olhem para a “alta” tecnologia de agora como peça de museu à semelhança de como vemos hoje a outrora conquista do pulmão de aço (foto).
Muitos que se debruçam sobre um futuro estonteante da tecnologia em Saúde apressam-se em subscrever críticas que têm como denominador comum algo como: “… há muitos cenários onde podem ser enxergados danos para humanidade que precisam ser exaustivamente pesquisados e efeitos antecipados…”. Nada diferente do teor do pensamento de Van Rensselaer Potter (1911-2001) sobre o impacto da tecnologia dos anos 60 do século passado sobre o homem, que foi o ponto de partida da Bioética, na publicação Ponte para o Futuro, em 1971.
O que é que se fala atualmente sobre tecnologia com potencial transformador na Medicina, a exigir vigorosa atenção, assemelhada à requirida pela segurança cibernética, e, inclusive, motivar a inusitada proposta de criação de uma Comissão de TecnoÉtica, com objetivo de preservar a humanidade, assessora do Presidente dos EUA?
Relaciono abaixo meia dúzia de temas para incentivar o bioamigo a se interessar – e a se impressionar- com o futuro da Medicina, quando está refazendo suas muitas energias gastas no cumprimento ético da tecnologia de agora:
- Inteligência artificial e robôs que possam fazer o que o homem faz, fazer melhor e fazer o que o homem não consegue fazer;
- “Cookies” instalados em prontuários eletrônicos com potencial de detonar o sigilo profissional;
- “Drones” para prestação de socorro à distância, como levar um desfibrilador elétrico;
- Ambulâncias de resgate sem motorista;
- Criação de quimera (monstro mitológico com corpo formado por diferentes animais) para sustentar substituição de órgãos;
- Armazenamento de “qualquer coisa na nuvem”, perpetuando “grandes ideias” descartadas na atualidade.
Cabe à Bioética papel relevante para a condução crítica da tecnologia do futuro no atendimento às necessidades de saúde. Respeitando nossas cores verde e amarelo, ela deve contribuir para evitar tanto a passividade acrítica quanto algo assemelhado ao ludismo -oposição cerrada ao desenvolvimento tecnológico.