Microorganismos sem fronteiras. A preocupação atual com a migração sem passaporte por Ebola estimulou-me a revirar o baú da História da Medicina e encontrar o transporte da Sífilis da América para a Europa, atribuída a Cristóvão Colombo (1451-1506). O clandestino Treponema pallidum só seria identificado cerca de 400 anos depois, em 1906, por Erich Hoffmann (1868–1959) e Fritz Richard Schaudinn (1871–1906). Os aspectos clínicos, contudo, a cronicidade e a morbimortalidade sa Sífilis provocaram uma das maiores repercussões sociais e políticas associadas a uma doença, ao longo de séculos. Há evidentes pontos de interesse da Bioética. Listo abaixo 10 deles.
- O pensamento de doença como castigo inspirou a denominação de Sífilis, o protagonista do poema Syphilis Sive Morbus Gallicus, escrito pelo médico e poeta italiano Girolamo Fracastoro (1478-1553). O tema versa sobre hipotética doença repugnante que era um castigo dos deuses. Tornou-se comum reduzir o estigma da Sífilis chamando-a de Lues, mas esta palavra latina é mais agressiva, pois significa praga.
- A Sífilis está intimamente ligada aos primórdios da Beneficência em Medicina, a disponibilização do benefício farmacológico. O alemão Paul Ehrlich (1854-1915), Premio Nobel em 1908, é considerado o pai da terapêutica química. Ele construiu a hipótese que se corantes têm afinidade por bactérias, como o Treponema pallidum, compostos químicos poderiam atuar em mesmos receptores, interferir no metabolismo das mesmas e exterminá-las, sem afetar demais tecidos.
- O benefício formulado a partir do arsênico foi chamado de uma “bala mágica” por Ehrlich- tinha um alvo específico- e recebeu a denominação comercial de Salvarsan. Da morte para vida, o veneno dos reis transformava-se em prescrição médica ética para o tratamento do até então incurável.
- Ehrlich teve o senso ético de fazer mudanças estruturais no composto de arsênico guiado pelos resultados das experiências em coelhos. Foram notáveis 605 versões descartadas. A bem sucedida levou, por isso, o nome de Salvarsan 606, assim comercializada.
- Houve a intenção de fazer pesquisa no homem antes do lançamento no mercado. Sabia-se que coelhos revertiam a doença, mas se desconhecia sobre a segurança do uso em humano. A pressão social foi mais forte. A Sífilis era um enorme problema de saúde pública que ocupava os gabinetes políticos.
- Prisioneiros foram designados sujeitos de pesquisas subsequentes, sem nenhuma conotação de voluntariado. Prostitutas eram presas com um exame local de 1 minuto, antes mesmo da disponibilidade da reação de Wassermann (o alemão August von, 1866-1825), introduzida em 1906. O horror da doença associado a sentimento de eugenia violavam o que hoje se respeita como direitos humanos.
- Os resultados com o uso do Salvarsan e do Neosalvarsan eram muito heterogêneos, com taxa expressiva de adversidades. Muitas discussões ocorreram no âmbito da relação benefício-segurança, inclusive por conflitos de interesse de ordem econômica – a droga tornou-se a mais comercializada à época. Houve, inclusive a manifestação de grupos que entendiam que “tais pessoas não mereciam a salvação terapêutica”.
- A França criou uma sociedade pretendendo uma visão moral dos aspectos médicos envolvidos com a epidemiologia da Sífilis. A Société Française de Prophylaxie Sanitarie et Morale, liderada pelo famoso Jean Alfred Fournier (1832-1914), preocupada com o “perigo venéreo” e com o futuro de uma França habitada por uma “descendência cada vez mais débil”- entendia-se, à época, que a modalidade congênita de sífilis era hereditária – lançou um manual para jovens, recomendando o casamento aos 21 anos de idade, a fim de evitar contato com prostitutas.
- A Sífilis foi importante motivo de reflexões sobre a quebra do sigilo médico, iniciadas na Europa. No Brasil, o decreto 104/2011 do Ministério da Saúde lista a Sífilis adquirida, a Sífilis congênita e a Sífilis em gestante como doença de importância para a saúde pública. Assim, a notificação compulsória da Sífilis ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação é um dever legal, quebra do sigilo profissional autorizada pelo Código de Ética Médica brasileiro.
- “Mau sangue” foi o diagnóstico informado para cerca de 400 negros do Alabama a fim de os incluir num protocolo de estudo (Tuskegee). Ele objetivava verificar a hipótese que a manifestação cardiovascular da Sífilis era mais frequente no negro, ao contrário do branco que seria mais suscetível às complicações neurológicas. A pesquisa iniciada em 1932 estava ativa nas décadas subsequentes quando a Penicilina tornou-se disponível. Num dos episódios mais vergonhosos da História da Pesquisa Clínica, os humildes sujeitos da pesquisa foram impedidos de receber o benefício antibiótico para “não prejudicar” os resultados sobre a história natural da doença. O desrespeito à Ética em Pesquisa só terminou em 1972, quando a imprensa revelou o “pesadelo moral” em manchete.