Todo recém-nato humano precisou de uma placenta. Descartável após o nascimento, indispensável durante a sua permanência no útero materno. Primeiro elo entre mãe e filho, a placenta é seletiva, permite passagens úteis nas duas vias de direção e, muito importante, impede outras que poderiam ser danosas. Barreira placentária é termo de alta relevância na segurança natural.
Há poucos meses, levantou-se a inédita hipótese que o vírus Zika poderia atravessar a barreira da placenta e interferir no desenvolvimento do crânio do feto. É muito provável que estudos científicos concluam pela certeza desta relação de causa e efeito. Má notícia para a sociedade em geral, mais um desafio para a Medicina com várias implicações de natureza ética, como a da atualíssima pergunta:
– Doutor, desejo engravidar, receio a infecção pelo Zika, qual é a sua opinião?
– ???????
O tema virose-microcefalia está sendo tratado como uma verdade, tornou-se emergência sanitária e trouxe um diferencial malévolo para o vírus Zika em relação ao vírus da dengue. Na mulher, há a chance de haver dois contaminados. Um transitório quadro infeccioso na mulher, logo um passado e a possibilidade de uma permanente alteração estrutural no feto, determinando um futuro de incertezas.
O vetor infectivo do vírus é o Aedes aegyptii há muito conhecido no Brasil dos tempos da febre amarela. Agora, o mosquito tornou-se o temível inimigo da população fértil e desejosa de procriar. Fêmea que precisa amadurecer os seus ovos versus fêmea que gesta um bebê. E o Aedes aegyptii não é um cidadão obrigado a obedecer a leis, normas e códigos dos homens. A Natureza o comanda desde que Pandora expôs os males e a situação atual é um enigma em relação ao famoso pensamento de Aristóteles (384ac-322ac): A Natureza não faz nada inútil.
O cruel mosquito é pequeno, resistente, voa deixando baixa visibilidade dos movimentos, precisa picar para sobreviver e utiliza tática de guerrilha. A alta tecnologia de muitos combates exitosos da ciência não trouxe esperanças de erradicação até agora. Pelo contrário, jatos velozes fazem-no rapidinho atravessar fronteiras geográficas carreando vírus. O aquecimento global o beneficia, ao mesmo tempo que faz lembrar que o homem de certa forma contribui para o criadouro, além das águas empoçadas pela urbanização. Pela denominação da espécie, faz lembrar a terceira praga do Egito.
A preocupação binária alastrou-se rapidamente do Nordeste brasileiro para a América Latina. Os fantasmas do acaso, do desconhecido e das incertezas assombram e mentalizam o feto sendo por eles segurado pelo calcanhar em que o liquido amniótico faz as vezes das águas do rio Estige.
As dúvidas diversificam os pensamentos. Palavras de pessimismo, medo, raiva extravasam. Todos se desejam sob telas mosquiteiras. Acusações, proibições e renúncias são efetuadas e cogitadas. Proibo logo assisto não é uma boa política de saúde.
A preocupação com o futuro do filho, a prudência de não se arriscar num shakesperiano ser ou não ser gestante atraem atitudes de paternalismo antagônicas às de liberdade para a natural perpetuação da espécie. O vírus Zika transfigurou-se num agente anti-concepcional numa cartela em forma de inseto. Inevitáveis, condutas-momento limitadoras emergem em níveis governamental, médico e familiar. Timidamente esperançosas que logo haverá uma conduta-época resolutiva. Vacina é o seu nome maior.
A história da Medicina registra que este novo calcanhar de Aquiles da humanidade e as consequências comportamentais da vulnerabilidade já aconteceram em função da falta de boas expectativas de solução de uma doença no curto prazo. Representaram um não a um contágio sexual e um não à gestação, no melhor estilo da prevenção pela proibição.
Destaco duas situações ligadas a dois franceses professores de Medicina na segunda metade do século XIX. A primeira refere-se a Michel Peter (1824-1893). Ele incomodou-se com o mau prognóstico da gestação em portadoras de cardiopatia e transferiu a sua impotência em delas cuidar para uma recomendação médica vigorosa (Quadro). O alto grau de paternalismo do Não engravide era justificável pela desesperança terapêutica ante a uma sobrecarga para um coração lesado. O aforismo de Peter exemplifica uma conduta-momento que somente várias décadas depois foi substituída por condutas-época proporcionadas pelo progresso da Medicina em cuidar da gestante com doença cardíaca.
A segunda refere-se a Jean Alfred Fournier (1832-1914), o epônimo da gangrena de Fournier. Ele liderou a “Societé Française de Prophylaxie Sanitaire et Morale”. A França das últimas décadas do século XIX estava desgastada pela guerra com a Prússia, perdera um grande contingente de soldados e a renovação populacional estava sendo entendida como ameaçada pela sífilis.
A infecção era erroneamente entendida como hereditária, determinava apreciações morais ligadas à conotação sexual e suponha-se que cada vez mais os futuros franceses padeceriam de graves transtornos mentais pela doença. A França acabaria, diziam, e neste cenário floresceu e disseminou a orientação “patriótica” da referida Sociedade: Rapazes franceses, abstenham-se de contato sexual com prostitutas para evitar a sífilis e casem-se aos 21 anos de idade imbuídos da máxima fidelidade à esposa.
Assim deu-se a reação que se entendeu necessária para que a população francesa “fora do submundo” tivesse gestações com fetos saudáveis.
Novamente, um alto grau de paternalismo, uma conduta-momento impositiva pela ausência de tratamento eficaz da sífilis e pelas graves repercussões em vários órgãos, uma preocupação nacionalista baseada numa premissa científica equivocada.
Evidentemente, o foco de então no contato com as prostitutas transmissoras da sífilis passou para o Aedes aegyptii vetor do vírus Zika, a respeito da preocupação gestacional, agora sob uma proposição científica válida.
O vírus Zika é um novo agente etiopatogênico no Brasil, nem completou o primeiro ano de convivência entre nós. Ele desencadeou uma guerra virológica. E como toda guerra traz progressos para a Medicina, permitiu uma aula sobre o valor do olho clínico, a sua preclara utilização por médicos brasileiros com efeito no campo da epidemiologia, assim desdizendo que ele padece de catarata, como insinuam muitos representantes da Medicina baseada em evidências.
O reconhecimento da microcefalia associada ao vírus Zika representou uma afirmação do valor do médico ético que está próximo ao paciente pelo Brasil, o examina, enxerga e raciocina de modo não automatizado, sabe dispensar a alta tecnologia tendo uma simples fita métrica à mão e uma medida padrão na própria cabeça, usa o tempo profissional para uma análise crítica do que está acontecendo, conhecedor da literatura, mas apto a ter uma identidade própria e a pensar novo. Como tantas outras enfermidades – a doença de Chagas é exemplo brasileiro também-, tudo começa com a coletânea do quadro clínico e o diagnóstico. A terapêutica e a prevenção costumam vir depois.
Esperemos que condutas-épocas de excelência cheguem em breve para substituir condutas-momento restritivas! Pois o vírus Zika tornou-se um alerta maior de saúde pública internacional pelo potencial de provocar malformações congênitas. Precisamos ajudar a placenta!