Pessoas andam na rua, pessoas sobem e descem escadas, pessoas comem em restaurantes. Qual é a novidade? Estão fazendo com a atenção num smartphone. Conectado com o mundo, conectado com todo o mundo, mas não conectado com a paisagem do caminho, com a cautela na escadaria, com os amigos de refeição que aceitaram o convite, que se torna surrealista: – …Vamos almoçar juntos?…”.
Um dos aspectos do vício é o prejuízo às atividades rotineiras. Alguém que não foi trabalhar para ir ao Hipódromo apostar páreo por páreo virou reminiscências do passado. Ser alcoólatra já convive mais com não estar sob o efeito do álcool. Vício não é incurável.
O que surge na presente geração é o vício tecnológico por comportamento envolvendo a interação homem-máquina, portanto não químico. O vício em smartphone é, pois, um vício tecnológico. E que vício!
O endereço eletrônicohttp://www.plosone.org/article/fetchObject.action?uri=info%3Adoi%2F10.1371%2Fjournal.pone.0098312&representation=PDFpermite uma leitura instrutiva sobre a identificação deste vício “portátil multifunção”, incluindo compulsão, prejuízo ao que deveria estar fazendo com atenção e alucinação acerca de toques e vibrações desde o aparelho.
O médico-pessoa humana não está isento de cair no vício. Há um ponto de interesse da Bioética da Beira do leito, referente ao médico-remédio, ao médico-orientador e ao médico-colega, inserido na relação médico-paciente acolhedora e na relação médico-médico de confiança.
Uma das seduções da Bioética é evitar o maniqueísmo do certo-errado. Os vários ângulos de visão da questão são bem-vindos e merecem a reflexão. É essencial que o olhar da Bioética poste-se em cada ângulo isento de preconceitos, vacinado contra o autoritarismo, vestido com o prét-à-porter da eticolegalidade, despido de exigências não merecidas, funcionando como catalizador para a mais conveniente capacitação de realização para a circunstância.
Considerando o ângulo de visão do paciente, o imediatismo da comunicação é fator positivo. A mãe aflita pode falar com o pediatra antes das 15 horas, quando ele chegava ao consultório. O paciente tem a oportunidade de consultar “na hora que entende que precisa” o médico-remédio que irá tranquilizá-lo de um sintoma que o apavorou e o médico-orientador que irá direcionar para a antecipação de um exame de controle. Já o colega pode ouvir a voz da experiência que confia assim que a dúvida surgir.
Será que estas observações estariam inseridas no vício? O conceito de compulsão não estaria aplicável, substituído por facilidade ao imediatismo da comunicação. Não haverá prejuízo de função, pelo contrário, beneficia ser mãe, não ser paciente “tigre”, ser colega zeloso e prudente. É o ângulo que vê o estímulo, como se fora a internet. O outro ângulo é a disposição de como atendê-los.
A bola passa então da emissão ao médico para a recepção pelo médico. O primeiro ponto a perceber é o quanto cada médico entende o smartphone como instrumento de trabalho. Verificamos que, atualmente, estetoscópio, carimbo e smartphone formam um “kit portátil indispensável”. Recentemente esqueci o smartphone em casa, assim que me dei conta, mandei um motoboy buscá-lo… Que alívio quando ele chegou!
O segundo ponto é o quanto o médico entende que deva estar telefonista, vocalizando um imediato Alô! Cada um deve criar uma auto-cartilha, manual de uso próprio do smartphone enquanto médico, em prol da saúde mental anti-compulsiva de ficar constantemente verificando se há mensagens, se o toque do vizinho não seria o do seu, se a insistência não seria uma emergência, ou se passar visita ou dar consulta é como dirigir –respeitosamente- no trânsito em relação ao uso do smartphone. Respeito é palavra de ordem no tema! Um aspecto da comunicação interpessoal que irrita é quando você está no corredor do Hospital conversando com alguém, no meio de uma elaboração, quando um terceiro passa, para e começa a falar sobre “qualquer outra coisa” sem a mínima cerimônia. Hierarquia à parte… Com o smartphone é similar, uma interrupção que poderá ser indevida.
Estar à disposição e estar disponível se aproximaram pelo efeito do smartphone. Não há dúvida que o médico idealizado é aquele “viciado” em Medicina, a conotação do sacerdócio. Mas, até que ponto inclui o imediatismo do “conectado ao paciente” é incógnita. O muro está aí, ficamos de um lado dele ou em cima dele. Ou derrubamos com o martelar da Bioética.
É preciso refletir eticamente sobre este efeito bumerangue provocado pelo smartphone que leva a palavra do médico para o ar (“… Obrigado, doutor, por atender a minha chamada!…”), mas, a seguir, volta-se contra ele (“…Doutor, o senhor desviou a atenção de mim!…- verbalizado, ou pior, apenas pensado com aquele sorriso).
O francês René Descartes (1596-1650) pode ser uma fonte de sabedoria para a questão: “… Grandes cabeças são capazes de grandes vícios e de grandes virtudes…”. Melhor se associado ao estadunidense Abraham Lincoln (1809-1865): “… É minha experiência que pessoas sem vícios têm poucas virtudes…”.Como ensinou o dinamarquês Prêmio Nobel Neils Bohr (1885-1962): “… O oposto a uma verdade profunda pode ser outra verdade profunda …”.
Devo terminar por aqui, o smartphone está tocando…