Neste dezembro de 2014, mais um ano de formado. Entrei na Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil , pelo cabelo raspado no trote usava uma boina verde com a inicial FNM e frequentemente ouvia a “brincadeira” Fábrica Nacional de Motores que à época era famosa por fabricar os caminhões fenemê. Alguns colegas brigaram na rua por isso. Colei grau na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sua nova denominação. Mas a mesma e inesquecível Faculdade de Medicina da Praia Vermelha. De inúmeras histórias e estórias.
A Praia Vermelha persiste parte da Cidade Maravilhosa abençoada pela Natureza ao sopé do Pão de Açúcar. O prédio da Faculdade, todavia, não mais existe. Ele tombou vítima do Governo Federal nos anos 70. Violência contra o Patrimônio Histórico do Brasil e contra os ex-alunos, a pretexto de consolidar a transferência da Faculdade para a ilha do Fundão.
A arquitetura marcante e as dependências funcionais permanecem na memória, além de um poucos cacos que alguns recolheram na demolição apressada.
Das muitas recordações, a seguinte aconteceu no último trimestre de 1963, aula de Parasitologia no anfiteatro.
Ele era um pesadelo diurno de muitos mestres. Anticonvencional assumido, possuía cadeira cativa no fundo da sala para tirar o cochilo que o recuperasse de uns prematuros plantões noturnos que ajudavam no sustento longe de casa.
O apelido Trotsky veio de trote de calouro. A cada um que recebia- e como ficara marcado, foram dezenas até a “libertação” no dia 13 de maio-, ele reagia com um inflamado discurso de esquerda contra a arbitrariedade dos veteranos que só queriam ridicularizar os calouros. Coincidentemente, o nosso colega nascera no dia, mês e ano de morte de Lev Davidovich Bronstein (Leon Trotsky -1897-1940).
Naquela manhã ele aprontou a mais inspirada da sua carreira bem-sucedida de estudante catarse da turma.
Não mais do que 10 minutos de aula, Trotsky interpelou o professor assim que este virara as costas para escrever na lousa o que acabara de dizer: REAÇÃO DE MACHADO GUERREIRO, um exame centenário para diagnóstico de Doença de Chagas, homenagem ao paulista Astrogildo Machado (1885-1945) e ao paraense Cezar Guerreiro (1885-1949), pesquisadores do então Instituto Manguinhos.
“-Professor?” Quando todos se viraram e lhe voltaram os olhares, viram o Trotsky em pé, olhar fixo no seu alvo, fácies indignada- marca registrada nestas ocasiões- todo vestido de branco denunciando o plantão que fez ou que faria – ou ambos.
O dedo indicador balançava em direção ao teto, como que armando o gatilho. Só aguardava o professor se virar para a turma para acertar a mira e disparar.
E antes mesmo que o professor ainda mais vermelho do que o habitual- hipertenso que era- pudesse fixar o olhar em quem estava perturbando, Trotsky fuzilou com o seu sotaque mineiro: “ – Professor, isto é um absurdo, eu me recuso a despertar instintos beligerantes, este trem aí é contra minha educação e contra o espírito de Hipócrates, uai. Professor, o senhor bem sabe que a cor do médico é branca, como é a da pomba da paz”. Respirou fundo e prosseguiu elevando a voz e apontando firmemente para o professor petrificado: “- Eu sou um pacifista!”.,
Ninguém entendeu o Trotsky pacifista, mas ele tinha crédito. A classe animou-se, qualquer coisa seria melhor do que ficar prestando atenção a nomes de ameba, lombriga e sarna em latim. Quanta perda de tempo! Bem-vindas facilidades eletrônicas.
E ante o olhar interrogativo do professor, o irreverente Trotsky, arrematou: “ – Eu nunca, mas nunca mesmo, professor, vou pedir pro meu paciente trazer um machado guerreiro, ou, então pra se submeter a um machado guerreiro, nem que ele seja um índio! Já imaginou o poder devastador, sanguinário, do resultado de uma reação de machado guerreiro?” Não seria coleta de sangue, seria uma hemorragia!
O nosso artista se sentou rápido, observando de soslaio os vários lados em busca dos “méritos”. Qualquer semelhança com a Escolinha do Prof. Raimundo…
Alguns colegas não pescaram o duplo sentido de pronto e um zunzunzum tomou conta da sala pelas explicações que uns davam para outros.
Aquele professor já sofrera na pele outras do Trotsky, literalmente, porque contrariedades costumavam lhe dar urticárias gigantes.
Mas, quem sabe, o parasitologista autor do livro adotado- e odiado- pelos alunos não estivesse mais aguentando ficar se repetindo anos a fio numa sala de aula pegando fogo numa temperatura de 40ºC e aparelho de ar refrigerado quebrado desde não se sabia mais quando.
Lâminas, microscópios e estudantes cansam sem interatividade, era o diagnóstico mais provável. E ali estava uma oportunidade, embora fora de série – e do sério-, para que ele mudasse a postura de distanciamento e praticasse um relacionamento mestre-discípulo mais humano. Curiosamente, Trotsky, que adorava frases feitas entre elas provérbios e adágios populares, poderia estar representando um mal (comportado) que vem para o bem (do professor).
A vítima do Trotsky mordaz entendeu que a aula já tinha ido pro espaço mesmo e decidiu entrar no clima-certamente mais ameno. Encolheu a barriga o que dava e espremeu-se até o fundo da sala, mostrando mais de perto o avental que há muito deixara de ser branco e as hastes dos óculos remendadas com esparadrapo, uma triste expressão da magra remuneração de quem só se dedicava a uma cadeira básica.
O professor chegou ao epicentro do terremoto verbal. Fingiu-se mais furioso do que estava realmente. Expressou-se de imediato: “- Você sempre colocando suas manguinhas de fora, senhor Trotsky”. As duas últimas palavras foram ditas com bastante acento, descarregando alguns meses de raiva contida.
A classe que esperava em silêncio a maior bronca desanuviou, explodindo numa gargalhada em uníssono de mais de 150 alunos. Foi uma providencial válvula de escape, tão inesperada quanto refrescante, para a habitual chatice da aula sobre Parasitologia. Trotsky sentiu-se desarmado e expressou um sorriso amarelo. Sentia-se em posição inferior inaceitável.
O professor não parou por aí, tinha aberto a caixa de ferramentas impensável que pudesse existir. Esperou com paciência baixar os decibéis na sala e prosseguiu “à queima roupa”: – “É o fim de a picada eu ter de carregar esta cruz”. E completou olho no olho: “-Você é uma das maiores chagas da história da nossa faculdade, só não o reprovo pra não ter de o aturar de novo no próximo ano”.
Houve um espontâneo -e inédito- bater palmas para o professor. O placar lhe era favorável, 2×1, virara o jogo. E com a sutileza de se expressar com palavras ajustadas ao tema da aula, picada de inseto, Osvaldo Cruz e Carlos Chagas, um lado desconhecido pelos estudantes.
A última palavra, contudo foi de Trotsky. Sempre rápido na língua, mal ouvira a última parte com a mente ocupada em construir a réplica: “- O que é que um careca como o senhor, professor, entende de barbeiro?”. Empate no último minuto da prorrogação.
Foi a única aula de Parasitologia daquela turma- ou da centenária Faculdade- em que os alunos saíram falando bem do professor, até se ouviu que, pensando bem, Parasitologia não era tão chato assim…
Coincidência ou não, ninguém ficou para exame naquele ano, fato nunca até então acontecido com aquele professor. Obrigado Trotsky!
Uma resposta
parabéns dr. max. adorei o texto. uma aula. abcs