A Bioética da Beira do leito coleciona conhecimentos práticos. Um objetivo é que eles deem clareza de compreensão e poder de resolução a situações de conflito entre individualidades de percepção dos acontecimentos.
Não há dia profissional em que, pelo menos, o médico não resvale em alguma ameaça da harmonia da relação médico-paciente que provoca feridas emocionais. A maturidade vai ensinando quando um bandaid basta e quando o debridamento é obrigatório. Cicatrizes feias não são incomuns.
A simples prescrição de um medicamento, a elaboração de um banal atestado de doença e o descontraído “não é nada” pelo médico não estão livres de suscitar insatisfações. Evidentemente, o aumento da complexidade dos atos carrega mais chances de divergências de opinião no campo de interesse legal e da Ética. O risco de o médico ser surpreendido pelo não reconhecimento das boas práticas pelo paciente/familiar faz parte da beira do leito.
O médico desenvolve um senso de observação sobre posturas “ingratas” do paciente/familiar. É preciso não para ir em busca de agradecimentos, mas porque é hipocrático. Há as circunstâncias onde ele é tocado por percepções sobre descontentamentos não tão explícitos e que fazem apreciar a conveniência de se calar ou de falar sobre a suposição. Há as circunstâncias em que o médico recebe a verbalização do paciente/familiar sobre o descontentamento e, assim, ele pode reconhecer os sentimentos negativos em face ao que ocorre e se posicionar. Não raramente, a continuidade de um atendimento torna-se um verdadeiro percurso de trem fantasma, onde distintas sensações ameaçadoras manifestam-se “a cada curva”, provocando alerta cautelar máximo.
Um dos mais tristes cenários da beira do leito é o de um campo de batalha. Eu tive a oportunidade de participar da análise de um caso em que o sobrinho-cuidador não aceitava a alta do paciente. Ele condicionou a concordância à cura do tio. A internação fora motivada por uma isquemia cerebral com grave comprometimento motor. O argumento utilizado foi que o plantonista do Pronto Socorro, clínico geral, lhe informara que não era necessário chamar imediatamente o neurologista porque estava acostumado a cuidar de casos semelhantes. As sequelas foram atribuídas à ausência do especialista desde o início dos cuidados. A resolução demorou vários dias e mobilizou gestores, advogados e responsáveis pelo home care a que o paciente tinha direito.
A minha vivência de todos estes anos na beira do leito fez imaginá-la à semelhança de um campo de futebol com um jogo sendo transmitido pela televisão. O espectador televisivo vê uma imagem, mas dezenas delas estão sendo gravadas de vários ângulos e graus de proximidade. Do mesmo modo, pacientes e circunstantes armazenam imagens, mas compartilham a mesma do médico, por exemplo, enquanto “está tudo bem”.
Quando acontece um lance polêmico no jogo de futebol, as imagens não passadas são selecionadas e apresentadas, pretendendo-se esclarecimentos e significações. Do mesmo modo, quando surge a visão de má atitude do médico, paciente/familiar recupera as imagens até então “ mais do mesmo” pela ausência de impacto no resultado e lhes confere relevância como mais do que o mesmo.
Portanto, percepções armazenadas são cata-ventos que se movimentam ao sabor ventos do momento. Nada documentado exatamente, muita interpretação fantasiosa, mas é difícil deixar de respingar emocionalmente no médico. “… O senhor havia falado que… O senhor não havia falado isso… O outro médico bem que disse… O senhor mais atendeu ao celular do que me deu atenção…” são exemplos da estocagem aguardando uma motivação para ser manifestada. É da natureza humana.
Nenhum médico gosta de ser criticado. Muito menos de se manter impassível. Há os que logo convocam a infantaria de esclarecimento que marcha no sentido do tecnicismo. Há os que reagem de modo pontual e concisamente. O Bioamigo talvez se veja num destes extremos, ou em alguma atitude intermediária, depende muito do caso, é verdade.
A Bioética da Beira do leito aconselha que, na medida do possível, se evitem palavras intempestivas reativas. Elas podem servir para esfriar o sangue quente do médico pelo calor do ambiente que sente hostil, mas, por outro lado, é essencial que ele tenha em mente que será o exercício de explicações racionais em meio a um clima emocional não propício para o exercício da lógica. E, assim, o médico disser afoitamente, com a intenção de justificar um mau resultado, pode ser casca de banana por ele mesmo jogado no caminho. “… Isto nunca aconteceu… Vocês sabiam que poderia acontecer… Trabalhamos em equipe…” são exemplos de munição para reforço da postura antagônica. Se nunca aconteceu é porque agora houve uma falha, vocês sabiam soa defensivo, retranca mesmo, e em equipe sugere fuga da responsabilidade. As argumentações não planejadas podem, assim, funcionar como botões de acionamento de replays de imagens armazenadas provocando novos juízos.
A Bioética da Beira do leito estimula que o médico conserve a tranquilidade para pautar o início da sua fala nos momentos em que havia concordância. Esta estratégia tem se mostrado eficiente para destacar para o paciente/familiar a prévia superposição médico-paciente das imagens, assim recordando ter havido a iniciativa ética da informação sobre chances de intercorrências e de adversidades e o consequente consentimento capaz e devidamente esclarecido. Obviamente, frustrações da expectativa personificam-se em sentenciadores implacáveis, causando insensibilidade a explicações, porém, a volta ao início do processo de tomada de decisão é tática que tem o seu grau de utilidade e, ademais, evita agravamentos por uma resposta inicial frontalmente antagônica.
Neste contexto, a Bioética da Beira do leito aviva o quanto é importante o comportamento ético do médico, sempre atento desde o início do atendimento a uma auto- verificação de controle de qualidade a respeito da excelência técnico-científica e do rigor na atitude (destaque para a comunicação). É um “nada mais do que a obrigação”, com certeza, mas é também matéria-prima para a sinceridade no manejo da linguagem, para o uso conveniente das palavras quando acontecer uma controvérsia e para não ter motivos para fugir do embate.
A consciência tranquila, a paz de espírito do dever cumprido, não motiva simulações, não faz pensar em artimanhas e não objeta desculpas merecidas. Ela é tolerante ao contraditório e evita autoimposições de desvios de justificativas com potencial de ultrapassem dos limites éticos.
O Código de Ética Médica expõe a má prática que é vedada ao médico. A Bioética da Beira do leito complementa destacando a ligação da boa prática com a consciência profissional e o valor da estabilidade emocional do médico nas situações de maus entendimentos e maus propósitos perante maus resultados.