Crono é a personificação do tempo. Crono é pai de Quiron (origem de cirurgia). Quiron criou e ensinou Medicina a Asclepio, o deus da Medicina.
É essencial para o exercício ético da Medicina que haja uma unidade de pensamento sobre o passado, o presente e o futuro. Uma inovação tornar-se-á rotina? Substituirá a existente? O tempo dirá…
O tempo é uma ferramenta, é um método, é um objetivo na beira do leito. Conduta expectante, cicatrização por segunda intenção, uso de um fármaco por 10 dias consecutivos comprovam que o médico nunca deixa de lado o tempo. Embutido no prognóstico, ele, inclusive, define se a atuação deve ser eletiva, urgente ou em emergência.
Há muito tempo lido com doença valvar. Por isso, adquiri experiência no diagnóstico e no tratamento da endocardite infecciosa. Na junção das duas, consolidei vivência com a profilaxia da endocardite infecciosa em portador de doença valvar. A expertise foi valorizada pelo feedback com a Unidade Clínica de Valvopatia do InCor, um Serviço que conquistou a credibilidade de referência.
Em 1972, perante um paciente com doença valvar predisponente à endocardite infecciosa, recomendávamos o uso profilático da penicilina, uma hora antes de um procedimento dentário com risco de bacteriemia que pudesse levar à colonização de uma valva lesada e a sua repetição pelos dois dias seguintes.
A orientação foi sendo reduzida progressivamente no tempo de administração, de modo que 25 anos depois, em 1997, praticávamos amoxicilina VO 2g, tão somente uma hora antes do procedimento.
Frequentamos reuniões do ICE- International Collaboration on Endocarditis- e percebemos o movimento crescente de descrédito do valor científico da antibioticoprofilaxia liderado por colegas dos EUA. A persistência da recomendação estava ligada a preocupações a respeito de interpretações de dano e de negligência e suas implicações de ordem legal.
Em vista disto, em 2007, não nos causou surpresa o texto de Prevention of Bacterial Endocarditis: Recommendations by the American Heart Association. http://circ.ahajournals.org/content/116/15/1736.full. A nova diretriz consumou o que já amadurecia. Ela recomendou a cessação da antibioticoprofilaxia para o risco discreto ou moderado de vir a adquirir endocardite infecciosa.
O comitê argumentou que bacteriemia espontânea era mais frequente do que a causada por procedimentos, que o alcance da prevenção é restrito, que o risco de reações adversas ao antibiótico excedia o possível benefício, exceto em algumas situações com o mais alto risco da doença, e que a profilaxia primária pela boa saúde bucal era mais importante do que a secundária por antibiótico.
Logo a seguir, em 2008, o inglês NICE (National Institute for Health and Clinical Excellence) foi mais radical e recomendou completa cessação da antibioticoprofilaxia para endocardite infecciosa. http://www.nice.org.uk/guidance/cg64/resources/guidance-prophylaxis-against-infective-endocarditis-pdf.
Em 2009, a diretriz da European Society of Cardiology fez recomendação igual à da American Heart Association. http://www.escardio.org/guidelines-surveys/esc-guidelines/guidelinesdocuments/guidelines-ie-ft.pdf.
A Unidade Clínica de Valvopatia do Incor analisou a mudança de recomendação e adotou três linhas de atuação a respeito:
1- Não seguir a nova recomendação no ambulatório e na enfermaria. Os médicos da Unidade foram unânimes que deveríamos manter a então vigente, entendendo que: a) inexiste endocardite infecciosa não grave; b) atribuir maior risco à presença de prótese, a um episódio no passado e a situações complexas de cirurgia em portador de cardiopatia congênita não significa eliminação de risco em valvopatia natural de modo geral; c) escassa notificação de relação adversa à amoxicilina, entre nós; d) taxa de má saúde bucal dos pacientes na ordem de 80%, avaliada pelo Serviço de Odontologia do InCor.
2- Divulgar a nossa posição aos dentistas, esclarecendo a fundamentação.
3- Atuar no Comitê de elaboração da Diretriz Brasileira e Interamericana de Valvopatia da Sociedade Brasileira de Cardiologia, reforçando o nosso ponto de vista. http://publicacoes.cardiol.br/consenso/2011/Diretriz%20Valvopatias%20-%202011.pdf
O tempo passa rápido e chegamos a 2014. Quem procura a palavra da American Heart Association http://www.heart.org/HEARTORG/Conditions/CongenitalHeartDefects/
TheImpactofCongenitalHeartDefects/Infective-Endocarditis_UCM_307108 encontra um resumo para leigos no site que diz: “… hoje, antibióticos antes de procedimentos dentários são somente recomendados para pacientes que apresentam o mais alto risco de endocardite infecciosa…”.
E agora, novembro de 2014, após sete anos de vacas magras para o conceito da antibioticoprofilaxia, chega-nos uma publicação com a assinatura de Crono. A conclusão do respeitável senhor do tempo é: “… com a redução da prescrição da antibioticoprofilaxia, a incidência de casos de endocardite infecciosa elevou-se…”. Os autores fazem a ressalva que a relação temporal não necessariamente representa relação de causa e efeito…”.
Bioamigos, vejam como são expressivos os gráficos apresentados no Lancet de 18 de novembro. http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(14)62007-9.
O poder de Crono fez o diretor de Práticas Clínicas do NICE agir rápido. Sem perda de tempo, ele colocou um alerta no site da mesma, sinalizando a possibilidade de revisão imediata da diretriz de 2008: “…Nós iremos analisar em detalhe a publicação de hoje que mostra um aumento do número de casos de endocardite infecciosa…”. http://www.nice.org.uk/news/press-and-media/nice-to-review-its-guidance-on-the-use-of-antibiotics-to-prevent-infective-endocarditis.
Evidências científicas são interpretações realizadas por profissionais qualificados e bem intencionados. Os dados e os fatos que utilizam são captados dos cenários de pacientes que incluem desejáveis pesquisas sistematizadas- como as randomizadas- e vivências pessoais na beira do leito – que conferem valor a opiniões.
Entende-se que as pesquisas sustentam nível de evidência superior ao de uma opinião de especialista. Assim, atualizações de diretrizes exibem, comumente, ascensões de probabilidade determinadas pela incorporação de pesquisa randomizada. Nível C torna-se B ou nível B torna-se A, o que significa mais chance de efetivação da dimensão de efeito da recomendação.
O exemplo acima destacou uma movimentação diferente. Uma recomendação clássica sobre antibioticoprofilaxia em endocardite infecciosa perdeu o apoio de especialistas que detém poder de influência mundial sobre o tema. O racional não se mostrou fundamentado em dados de pesquisa. Foi justamente o contrário. Que se parasse de recomendá-la porque inexistia evidência de pesquisa favorável ao seu benefício. Desta maneira, a recomendação passou à classificação de inútil, ineficaz e até mesmo prejudicial.
Portanto, a ausência de dados e de fatos de pesquisas pode conviver tanto com uma classe IC -quando opiniões dão força de sustentação-, quanto com uma classe IIIC- quando opiniões não a aconselham.
Mas, a falta de evidência científica não afirma inutilidade ou ineficácia de recomendações rotineiras, provocando o nihilismo terapêutico ou preventivo. A eventual transformação de boa para má prática precisa contar com evidência de dano, do comprometimento indesejável da segurança para o paciente. No caso em questão, a incidência de casos de alergia à amoxicilina desempenhou este papel na visão do referido Comitê 2007 da American Heart Association.
A equação sem evidências de benefício e com evidências opinativas de malefício resultou, pois, no hipocrático resultado: se bem não faz, que não faça o mal. Se ela não existisse ainda, não deveria ser criada.
E aí reside um problema que interessa à Bioética. Durante todos esses anos, percebi que a conversa (minha e dos colegas da Unidade) com os jovens diretamente na beira do leito ou indiretamente como autores de diretriz nacional é ouvida com dúvidas em situações de divergência com diretrizes, como é o caso da antibioticoprofilaxia para endocardite infecciosa. A dúvida á salutar, o importante é como será conduzida.
Fica no ar a impressão que um determinado percentual de jovens médicos interpreta a experiência de fato vivenciada do professor/preceptor/ especialista que não produziu uma pesquisa sistematizada, como “achologia”. Uns quantos deles ignoram, pelo noviciado, que várias vezes por dia reproduzem “achologias” da História da Medicina que se tornaram clássicas e respeitadas pela evidência competente do tempo.
O polimento profissional do jovem médico reflete diretrizes e/ou contatos com professores/preceptores/especialistas. Como a força das diretrizes é avassaladora, elas como que vacinam jovens contra recomendação sem evidência, se entram em contato, não pega. Há obediência à rotina do Serviço, mas com contestação no íntimo, apesar das explicações com legitimidade e credibilidade. Recorde-se que há 20 anos, o W Bruce Fye da Clínica Mayo escreveu: “… o que eu chamo de trial-guideline- education process está tendo efeitos profundos na pesquisa e na prática da Cardiologia, efeitos tão significantes como a invenção do estetoscópio e do eletrocardiógrafo…”.
O que está se passando no momento com a antibioticoprofilaxia para endocardite infecciosa é alerta para os jovens sobre ser passivamente um agente de terceirização de recomendações de diretrizes que sofrem um juízo crítico de divergência da supervisão de seus estágios.
E na situação acima mencionada de profilaxia fica mais difícil ainda para o jovem perceber que o Serviço pode ter razão. O período de estágio é curto e, portanto, insuficiente para constatar resultados.
O psicólogo Bruno Bettelheim (1903-1990), especializado na infância, nos ensinou que os contos de fada contribuem para a formação da criança porque os personagens são ou bons ou maus, porque mostra que situações difíceis podem ser enfrentadas e porque a história não demora para acabar mostrando o lado vencedor. Válido para a questão.
Os contos inovam e se renovam, as diretrizes inovam e se renovam. É Crono na função de conselheiro-mor da Humanidade… e da beira do leito.
E com o devido respeito, recordemos Nelson Rodrigues (1912-1980): “…Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores…”. http://www.releituras.com/nelsonr_viralatas.asp
Uma resposta
Caro Max
muito bom, nós na Sta Casa tambem mantivemos rotina anterior, incvlusive discutimos com os alunos e residentes as recomendações atuais, as criticamos e mantivemos a rotina na profilaxia da EI
abç
Roberto Franken